ISSN Online: 2177-1235 | ISSN Print: 1983-5175

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Case Reports - Year2007 - Volume22 - Issue 4

ABSTRACT

Introduction: Gangrene was first description by Meleney, in 1924. This disease has terrible evolution, which can be obstructed with recent diagnostic and debridement. Objective: Systematize the treatment of a child victim of trauma with infection and gangrene. Case report: A patient victim of a cyclist accident, showing colostomy and external pelvis establish, 5 days after surgery was submitted to effective debridement of inguinal region, gluteus maximus muscle and back trunk, extensive amputation and surgical reconstruction in second time. Conclusion: The authors recommend early diagnosis and quickly treatment to patient has any chance of survive.

Keywords: Plastic surgery. Reconstructive surgical procedures. Debridement. Gangrene. Infection

RESUMO

Introdução: A primeira descrição de infecção com gangrena dos tecidos moles foi realizada por Meleney, em 1924. Observou-se que esta doença é de caráter fulminante, com chance de sobrevida quando prontamente diagnosticadas e desbridadas. Objetivo: Sistematizar o tratamento de um menino vítima de trauma com infecção e gangrena. Relato de caso: Menor traumatizado em acidente ciclístico. Apresentava colostomia em alça e fixação externa de bacia, evoluindo com gangrena dos tecidos moles. Foi submetido a desbridamento efetivo de região inguinal, glúteos e dorso, com extensa amputação dos tecidos moles e músculos e reconstrução em 2º tempo. Conclusão: Os autores recomendam que o diagnóstico e o tratamento sejam imediatos para existir uma chance de sobreviver à doença.

Palavras-chave: Cirurgia plástica. Procedimentos cirúrgicos reconstrutivos. Desbridamento. Gangrena. Infecção


INTRODUÇÃO

As vítimas de traumatismos, usualmente, requerem observações, tratamento especializado e minucioso, desde o atendimento inicial até o momento da alta hospitalar.

Este trabalho consta do atendimento de uma criança vítima de acidente automobilístico, em que houve evolução desfavorável até ser submetida a desbridamento eficiente de toda área desvitalizada e infeccionada, tendo obtido respostas imediatas ao tratamento instituído, e reconstrução do tronco realizada em segundo tempo.

É objetivo deste trabalho detalhar o tratamento realizado, com enfoque especial ao desbridamento em "tempo único", o qual se faz necessário para salvar a vida do paciente com trauma, doença agressiva e de prognóstico desfavorável.


RELATO DO CASO

O paciente veio transferido de outro hospital para o Hospital Naval Marcílio Dias (HNMD), com relato médico de ter sido vítima de acidente ciclístico envolvendo ônibus, quando estava passeando de bicicleta, tendo sido submetido, no hospital de origem, a colostomia derivativa em alça ao nível do colon no transverso; sutura de ferida em flanco esquerdo até região inguinal, e nádega esquerda até bordo anal (ferida única); rafia de lesão de reto extraperitoneal, com drenagem pré-sacra.

O mesmo apresentava-se pálido, respondendo a solicitações verbais, saturação de O2 99% ar ambiente, freqüência cardíaca de 146 bpm, PA: 80 x 50 mmHg, sonda vesical sem hematúria.

Na abordagem inicial feita pela equipe de plantão, foi identificado sangramento pela ferida, dor à movimentação e rotação externa do membro inferior esquerdo, tendo sido realizado curativo compressivo bem sucedido. Evoluiu com instabilidade hemodinâmica, taquipnéia e choque hipovolêmico. Suspeitou-se de fratura de quadril, tendo sido solicitada avaliação ortopédica de urgência. A ultra-sonografia abdominal descartou lesão intra-abdominal.

Após a avaliação pela equipe de ortopedia, foi diagnosticada fratura de bacia em região ísquio pubiana direita e luxação de asa ilíaca direita, confirmadas por tomografia computadorizada, sendo o paciente, então, submetido à fixação externa da bacia (Figura 1).


Figura 1 - Menor no pré-operatório imediato ao desbridamento - Observar a derivação em alça do transverso e fixação externa da bacia, com gangrena no flanco esquerdo.


Recebeu crioprecipitado, plasma fresco, concentrado de hemácias e plaquetas devido a grande hemorragia pré-operatória e sangramento de difícil controle. Também foi iniciada antibioticoterapia de largo espectro, com cefalotina, metronidazol e gentamicina.

No primeiro dia de pós-operatório, apresentou com P.A.M. 63/ 60 mmHg (90 x 50 mmHg). Continuando no respirador e em uso de expansores de volume, (albumina, plasma), além de vitamina K.

A criança mantinha a movimentação dos membros aos pequenos estímulos álgicos.

A evolução do quadro nos primeiros cinco dias foi desfavorável, com febre, aumento da área de tecido desvitalizado já envolvendo parte do dorso, com saída abundante de secreção sero+++/4+ sanguinolenta+/4+ pelo ferimento, que chamava atenção pelo volume ao exame físico.

Foi encaminhado ao desbridamento cirúrgico, oportunidade na qual foi colhido material para cultura. O aspecto pode ser observado nas Figuras 2 e 3.


Figura 2 - Aspecto pré-operatório imediato: abundante secreção sero-sanguinolenta (água de louça) pela ferida, eritema, grande epidermólise/necrose, circundada de pele aparentemente normal.


Figura 3 - Aspecto pré-operatório imediato: grande necrose do dorso com creptação à palpação e volumoso exudato em "água de lavagem da louça".



Durante o desbridamento, restos alimentares foram encontrados abaixo da pele do dorso (Figura 4), assim como fezes, próximas à região glútea, onde se observou um filete da musculatura do músculo reto do ânus (músculo esfincter externo do ânus - Figura 5), o qual foi preservado centralmente, ao lado dos músculos elevadores do reto, que propiciou boa remodelagem do orifício anal posteriormente. Músculo glúteo e musculatura anal parcialmente destruídos (Figura 6). A lavagem do coto distal da colostomia em alça também foi determinante na manutenção da boa limpeza da ferida.


Figura 4 - Mostrando fezes e sementes de melância no dorso.


Figura 5 - Apresentando na ponta da pinça um filete do músculo reto do ânus, que foi preservado, e destruição parcial do músculo glúteo maior.


Figura 6 - Desbridamento da musculatura do grande glúteo.



Durante o desbridamento cirúrgico, todo o tecido necrosado foi cuidadosamente retirado, com perda parcial da musculatura glútea, chegando até a parte superior da coxa esquerda (Figura 7). O limite cirúrgico foi definido a partir de sangramento vivo com possibilidade de hemostasia.


Figura 7 - Aspecto final do desbridamento cirúrgico.



Lavagem exaustiva do coto distal da colostomia com soro fisiológico em sentido único da colostomia até o coto anal. Colocação de dreno de Penrose para orientar o muco intestinal.

Em virtude do choque séptico, foi necessária a administração de adrenalina per-operatória. O paciente retornou à UTI pediátrica, onde apresentou evolução satisfatória, com retirada das drogas vasoativas e alta para a enfermaria em cinco dias.

Assim que o paciente começou a verbalizar e receber alimentação oral, trouxe um novo desafio: a necessidade de longos e diários períodos de jejum, visando ao curativo cirúrgico (dieta zero pré-operatória) e a necessidade de aporte nutricional para compensar as perdas diárias com o alto metabolismo.

Não optamos pela reposição parenteral, a fim de permitir a livre movimentação do menor fora do leito. Foi alimentado por via oral, com dieta hiperproteica e hipercalórica.

O tratamento da ferida foi baseado nos princípios de tratamento dos pacientes grandes queimados1. Sulfadiazina de prata foi utilizada nos primeiros curativos, sendo associada a polymen com a evolução da ferida.

Os familiares, sempre informados sobre a gravidade do caso, iniciaram acompanhamento pela clínica de psicologia, para serem preparados para o iminente curativo no leito.

Novas infecções oportunistas surgiram com hemoculturas positivas para Acynetobacter, bactérias e fungos, tratadas devidamente, conforme antibiograma. (Tabela 1).




Com os sinais vitais estáveis, foi programada a reconstrução anal, com boa resposta da musculatura elevadora do ânus e sem resposta do músculo constritor do mesmo.

Identificamos, por meio de estimulação elétrica per-operatória, a musculatura elevadora e constritora anal. A reconstrução foi realizada nos melhores aspectos anatômicos identificáveis pela equipe de cirurgia pediátrica do Hospital.

Após a retirada do fixador externo da bacia, com 45 dias de pós-operatório, foi iniciada a reconstrução cirúrgica do dorso com auto-enxertia de pele parcial fina, a qual apresentou excelente resultado, com importante retração secundária e com isso, diminuição do espaço traumatizado (Figuras 8 e 9), com tratamento e fixação o mais próximo do anatômico da musculatura glútea, preservando a reconstrução anal.


Figura 8 - Auto-enxertia de pele parcial.


Figura 9 - Aspecto final pós-operatório de duas semanas.



DISCUSSÃO

As infecções cirúrgicas são diferenciadas das infecções clínicas pela presença de um problema anatômico ou mecânico, que deve ser resolvido por meio de operação ou de outros procedimentos cirúrgicos, de modo a tratar a infecção2.

Procuramos estabelecer critérios no atendimento inicial desses pacientes a nível hospitalar. O treinamento da equipe multidisciplinar aumenta as chances de sobrevida dos pacientes graves que necessitam da colaboração de todos.

O exemplo mais comum de uma infecção cirúrgica é o abscesso subcutâneo, processo infeccioso caracterizado por um centro necrótico, dor, flutuação, rubor, calor e pus (leucócitos mortos em processo de desvitalização).

A infecção necrotizante dos tecidos, Síndrome de Meleney, é caracterizada por uma reação inflamatória circunvizinha ou adjacente ao tecido necrótico central, mal delimitada, com pele suprajacente de aspecto normal, grande comprometimento do tecido celular subcutâneo e da fáscia subjacente3.

Meleney, em 1924, publicou o primeiro relato de faiscite necrotizante. Esta gangrena sinergística, geralmente polimicrobiana, causada por bactérias produtoras de necrotoxinas (Streptococos beta-hemolíticos do grupo A, Stafilococos aureos, anaeróbios), caracterizada por extensa necrose da fáscia profunda e superficial, comprometimento do tecido subcutâneo e pele, toxicidade sistêmica, choque séptico, falência de múltiplos órgãos e morte, a menos que seja prontamente reconhecida e agressivamente tratada. O sinergismo entre bactérias aeróbias e anaeróbias é responsável pelo curso fulminante da doença. A exploração cirúrgica é o principal meio diagnóstico e terapêutico, pois demonstra a falta de aderência do fáscia ao músculo subjacente4.

A literatura subseqüente sugeriu que a amebíase cutânea poderia ser o diagnóstico correto da gangrena sinergística de Meleney5.

A gangrena sinérgica causada por bactérias anaeróbicas é caracterizada por dor extrema, rubor e edema, seguidos de enduração. O eritema circunda uma zona central de necrose. Uma úlcera com granulação, que pode cicatrizar, forma o centro original à medida que a necrose e o eritema estendem-se em direção periférica. Os sintomas são limitados a dor e, geralmente, não há febre. A localização habitual da infecção é uma ferida cirúrgica do abdome ou a área que circunda uma úlcera num membro. O tratamento inclui desbridamento e antibioticoterapia6.

A criança em questão apresentava flora multibacteriana, sugestiva de contaminação, com fezes no tecido celular subcutâneo e restos alimentares, tendo recebido antibioticoterapia empírica na UTI pediátrica, com cefalotina, gentamicina e metronidazol. Após as culturas, a antibioticoterapia era baseada no esquema sugerido, conforme Tabela 1.

A Figura 10 mostra claramente a retração cicatricial, com 18 meses de evolução do quadro, onde a linha de incisão inicial foi infraescapular bilateral, havendo, abaixo desta, recuperação de 10 cm de pele normal no dorso (vide comparação das Figuras 6 e 10.


Figura 10 - Recuperação do paciente.


CONCLUSÃO

O caso apresentado nos leva a pensar sobre a gangrena sinergística de Meleney associada à necrose traumática. A evolução desfavorável do paciente, com choque séptico e grande quantidade de secreção, levou ao diagnóstico de infecção necrotizante dos tecidos associada ao trauma. Esta tem mortalidade em torno de 89% em mãos experientes7.

O tratamento correto em tempo único, com antibiticoterapia, oxigenioterapia hiperbárica e desbridamento cirúrgico tem sido responsável pela melhora da sobrevida.

Hoje, o menino tem bom convívio escolar, fez a reconstrução do trânsito intestinal com bom resultado e continência anal das fezes. Este não quis fazer a expansão tecidual proposta pela cirurgia plástica a ele e aos pais, para melhora da cicatriz, a qual poderá ser realizada em tratamento futuro.

Atualmente, a família foi transferida pela Marinha do Brasil para a região sul do país, o que dificulta o acompanhamento do caso em questão.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Lima Júnior EM, Serra MCVF. Tratado de queimaduras.1ª ed. São Paulo: Editora Atheneu;2003.

2. Sabiston D. Tratado de cirurgia - as bases biológicas da prática cirúrgica moderna. 15ª ed. vol. 1. Rio de Janeiro:Guanabara Koogan;1999. cap.15.

3. Melega JM. Cirurgia plástica - fundamentos e arte. Princípios gerais. Rio de Janeiro:Medsi;2002.cap.6.

4. publicacoes.cardiol.br/abc/2001/7603/008

5. www.azmtnwellness.com/meleneys_ulcer.htm

6. Harrison TR. Medicina interna. 14a ed. vol. 1. Rio de Janeiro:Guanabara Koogan; 1996.p.1064-5.

7. www.emedicine.com/EMERG/topic332.htm.















I. Cirurgião Geral, Cirurgião Plástico, Especialista do MEC pelo Hospital Naval Marcílio Dias, Membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica.
II. CT (Md), Cirurgiã Plástica do Hospital Naval Marcílio Dias.
III. CMG (Md), Chefe da Clínica de Cirurgia Plástica do Hospital Naval Marcílio Dias, Membro Titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica.
IV. Cirurgião Geral, Cirurgião Plástico, Especialista do MEC pelo Hospital Naval Marcílio Dias, Membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica.
V. Cirurgião Geral, Cirurgião Plástico, Especialista pelo MEC pelo hospital Naval Marcilio Dias. Membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica.


Correspondência para:
Renato Silva de Cazaes
Av. Afonso de Taunay, 391 - apto. 101 - Barra da Tijuca
Rio de Janeiro - RJ - 22621-310
E-mail: drrenatocazaes@click.com.br


Trabalho realizado Hospital Naval Marcílio Dias, Rio de Janeiro, RJ.

Artigo recebido: 20/08/2007
Artigo aprovado: 15/10/2007


* Trabalho recebeu o Prêmio: 3º Lugar do Prêmio Ivo Pitanguy 2005

 

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