ISSN Online: 2177-1235 | ISSN Print: 1983-5175

Previous Article Next Article

Case Report - Year2013 - Volume28 - Issue 1

RESUMO

Lesões labiais extensas sempre representaram um desafio para a cirurgia plástica. Não existe técnica ideal para reconstrução labial. Neste artigo são relatados os casos de 2 pacientes que apresentavam grandes defeitos no lábio inferior, acometendo 80% e 60% da superfície dessa estrutura, após traumatismo lacerocontuso e ressecção de tumor epidermoide, respectivamente. Esses pacientes foram submetidos a reconstrução labial pela técnica de Karapandzic1, descrita em 1974. No primeiro caso, o resultado foi considerado desfavorável, em decorrência da presença de deiscência. No segundo caso, foi obtido bom resultado estético e funcional, sem sofrimento dos retalhos ou hematomas. A técnica de Karapandzic constitui uma opção de fácil execução e reprodutível, apresentando bons resultados estéticos e funcionais.

Palavras-chave: Lábio/cirurgia. Retalhos cirúrgicos. Procedimentos cirúrgicos reconstrutivos.

ABSTRACT

Reconstruction of extensive labral lesions has always been a challenge for plastic surgeons. Thus far, an optimal lip reconstruction technique has not yet been established. This report includes 2 cases of large lower lip defects, affecting 80% and 60% of the surface structure that resulted from laceration/contusion trauma and epidermal tumor resection, respectively. The patients underwent lip reconstruction using the Karapandzic technique, which was first described in 1974. In the first case, the result was considered unfavorable because of dehiscence. In the second case, good functional and aesthetic results were obtained without from the patchwork or bruises. The Karapandzic technique is easy to perform and may be considered a reproducible option for lip reconstruction with good functional and aesthetic results.

Keywords: Lip/surgery. Surgical flaps. Reconstructive surgical procedures.


INTRODUÇÃO

A face é um importante atributo nos seres humanos, por ser a porção mais visível do corpo e conter estruturas delicadas e complexas, estética e funcionalmente. Os lábios superiores e inferiores constituem o orifício oral e são responsáveis por uma série de funções orgânicas, como articulação da fala, alimentação, mímica facial e continência salivar, entre outras. O desempenho dessas funções pode ser comprometido por defeitos estruturais dos lábios decorrentes de trauma, infecções, malformações congênitas e lesões tumorais.

Desde o início do século 19, foram descritas várias técnicas para reconstrução do lábio inferior. Defeitos menores que um terço do comprimento labial são habitualmente tratados por fechamento primário. Poucos métodos estão descritos na literatura para tratamento de defeitos maiores que dois terços do lábio, dentre os quais se encontram os retalhos de Karapandzic1 e de Webster-Bernard2. Cada procedimento apresenta vantagens e a escolha da técnica deve considerar tanto o tamanho do defeito como a disponibilidade de tecido vizinho.

A técnica de Karapandzic foi introduzida, em 1974, para reconstrução de lábio inferior. É uma modificação do fan-flap de Gillies3, e sua melhor indicação é a reconstrução dos defeitos centrais. A vantagem da técnica é a cirurgia em tempo único para restaurar a musculatura orbicular, restabelecendo a funcionalidade e a estética labiais. É um retalho neurovascular, pois permite a manutenção total da inervação labial; para tanto, é fundamental, em sua dissecção, não seccionar a estrutura nervosa, preservando a sensação e a motricidade do lábio reconstruído. As incisões do retalho são semicirculares, unindo a margem inferior do defeito à asa nasal, e devem envolver pele, tecido subcutâneo e musculatura, separando o músculo orbicular dos demais envolvidos na mímica facial. A técnica de Karapandzic apresenta como principal desvantagem a microstomia, principalmente quando utilizada para reconstrução de defeitos maiores, que, no entanto, pode responder a fisioterapia e dilatação.

O objetivo deste trabalho é relatar 2 casos de pacientes portadores de grandes lesões do lábio inferior, submetidos a reconstrução com emprego da técnica de Karapandzic.


RELATO DOS CASOS

Caso 1


Paciente do sexo masculino, 24 anos de idade, admitido com traumatismo lacerocontuso de face decorrente de acidente automobilístico, apresentava avulsão de 80% do lábio inferior, em sua maior parte à esquerda (Figura 1). No atendimento inicial, realizou-se desbridamento de tecidos desvitalizados e hemostasia da região perioral, seguidos de sutura de lesões associadas na face. Foi submetido a reconstrução de lábio inferior pela técnica de Karapandzic, no Hospital Santo Amaro (Guarujá, SP, Brasil) (Figuras 2 e 3).


Figura 1 - Caso 1. Aspecto pré-operatório de paciente com perda de 80% do lábio inferior após traumatismo.


Figura 2 - Caso 1. Aspecto ao 3º dia de pós-operatório, com presença de pequena deiscência na junção dos retalhos.


Figura 3 - Caso 1. Aspecto ao 7º dia de pós-operatório, revelando resultado considerado não-satisfatório.



Caso 2

Paciente do sexo masculino, 53 anos de idade, albino, auxiliar da construção civil, tabagista por 15 anos e etilista social. Apresentou lesão crostosa em terço médio do lábio inferior, que evoluiu com sangramento, dor e edema local, dando origem a lesão ulcerocrostosa de crescimento rápido, com evolução de 3 meses (Figura 4). Realizada biópsia, que diagnosticou carcinoma epidermoide moderadamente invasivo. O paciente foi submetido a ressecção total da lesão com margens e reconstrução plástica em um só tempo cirúrgico pela técnica de Karapandzic, no Hospital Ana Costa (Santos, SP, Brasil) (Figuras 5 a 8).


Figura 4 - Caso 2. Aspecto pré-operatório de paciente com carcinoma epidermoide de lábio inferior.


Figura 5 - Caso 2. Grande defeito labial após ressecção de carcinoma epidermoide com margem cirúrgica.


Figura 6 - Caso 2. Confecção dos retalhos de avanço, preservando-se a rede vasculonervosa.


Figura 7 - Caso 2. Aspecto pós-operatório imediato após reconstrução labial.


Figura 8 - Caso 2. Aspecto pós-operatório 15 dias após reconstrução labial.



Técnica Cirúrgica

Os pacientes foram posicionados em decúbito dorsal, sob anestesia geral. Realizada infiltração local com solução de lidocaína a 1% contendo adrenalina a 1:200.000. Com base na descrição da técnica de Karapandzic1, foi realizada marcação do retalho à direita, utilizando-se a linha nasolabial como referência, obtendo-se um retalho lateral de tecido adjacente. Em seguida, procedeu-se à marcação de retalho no sulco nasogeniano, à esquerda. No caso 2, realizou-se a ressecção do carcinoma epidermoide com margens cirúrgicas (Figura 5). Procedeu-se à incisão e à dissecção dos retalhos miocutâneos delicadamente. O músculo orbicular foi dissecado com auxílio de tesouras delicadas até encontrar os ramos arteriais e venosos (labiais superiores e inferiores), que foram identificados e preservados (Figura 6). Da mesma forma, os ramos nervosos foram identificados e preservados. Os dois retalhos foram facilmente mobilizados e avançados para a linha média. Realizou-se cuidadosa hemostasia com bisturi elétrico bipolar e procedeu-se à síntese de musculatura e mucosa com pontos simples separados de categute 3-0, e da pele com pontos simples separados de mononáilon 5.0 e 6.0. O procedimento foi bem tolerado durante o pós-operatório.

O paciente do caso 1 apresentou deiscência labial na junção dos retalhos, no 3º dia de pós-operatório, e será submetido a procedimento complementar para refinamento do resultado estético (Figuras 2 e 3). O resultado do caso 2 foi considerado bom, do ponto de vista tanto estético como funcional. Não foram observados sofrimento dos retalhos ou hematomas.

O estudo anatomopatológico do caso 2 revelou um carcinoma epidermoide de 3 cm x 1,5 cm, moderadamente diferenciado (grau II), invadindo córion e margens livres de 0,8 cm. Esse paciente foi encaminhado para acompanhamento ambulatorial (Figuras 7 e 8).


DISCUSSÃO

Os lábios são responsáveis pela competência oral, deglutição, articulação e expressão da emoção, além de simbolizarem a beleza. O lábio inferior controla a motilidade e funciona como barreira para prevenir vazamento. O objetivo principal da reconstrução é restabelecer funcionalidade, simetria e contorno.

Não existe um método ideal para a reconstrução dos lábios4-16. Nos casos em que a lesão ocupa até um terço do bordo do lábio, o fechamento pode ser realizado de forma direta ou pode-se recorrer à plastia em W. Quando a lesão é superior a 35% da superfície do lábio, o uso de retalhos é requerido. Utiliza-se pele das zonas de vizinhança, como o outro lábio não afetado (tipo Abbe), a bochecha (tipo Gillies ou Estlander) ou o mento (tipo Bernard).

A técnica escolhida tem a vantagem de ser realizada em um único ato cirúrgico e, uma vez aprendida, é de rápida execução e preserva uma importante rede vasculonervosa, permitindo maior segurança e a manutenção da mobilidade e sensibilidade do lábio.

As incisões do retalho são semicirculares, unindo a margem inferior do defeito à asa nasal, e devem envolver a pele e o tecido subcutâneo, além de separar o músculo orbicular dos demais músculos da mímica facial. Melhores resultados são obtidos quando a lesão se encontra na região mediana dos lábios, não sendo tão satisfatórios quando afetam os ângulos. O principal efeito adverso associado a essa técnica é a microstomia. Em cerca de 12% a 15% dos pacientes há necessidade de reintervenções para melhorar a microstomia, por meio de uma comissuroplastia.

A reconstrução de lábio utilizando a técnica de Karapandzic é um procedimento alternativo para as grandes lesões, sobretudo em lábio inferior, já que é realizada em um só procedimento, sendo rápida e segura. Além disso, a técnica mantém um pedículo vasculonervoso, proporcionando bons resultados, do ponto de vista tanto funcional como estético. Seu maior inconveniente é a produção de microstomia nas etapas precoces, mas que melhora gradualmente com o passar do tempo.


REFERÊNCIAS

1. Karapandzic M. Reconstruction of lip defects by local arterial flaps. Br J Plast Surg. 1974;27(1):93-7.

2. Webster RC, Coffey R, Kelleber RE. Total and partial reconstruction of the lower lip with innervated muscle-bearing flaps. Plast Reconstr Surg Transplant Bull. 1960;25:360-71.

3. Gillies HD, Millard R. Principles and art of plastic surgery. Boston: Little, Brown & Co; 1957. p.507-8.

4. Jabaley ME, Orcutt TW, Clement RL. Applications of the Karapandzic principle of lip reconstruction after excision of lip cancer. Am J Surg. 1976;132(4):529-32.

5. Matos da Fonseca A, Gómez Garcia F. Reconstrucción de labio con técnica de Karapandzic. Cir Plást Iberolatinoam. 2007;33(1):57-62.

6. Nzakamwita M, Linker M, Gitani J, Piert R. Repair of tissue loss of the lips. Acta Stomatol Belg. 1995;92(4):159-69.

7. Abulafia AJ, Edilberto L, Fernanda V. Reconstruction of the lower lip and chin with local flaps. Plast Reconstr Surg. 1996;97(4):847-9.

8. Calhoun KH. Reconstruction of small- and medium-sized defects of the lower lip. Am J Otolaryngol. 1992;13(1):16-22.

9. Kroll SS. Staged sequential flap reconstruction for large lower lip defects. Plast Reconstr Surg. 1991;88(4):620-5.

10. Jabaley ME, Clement RL, Orcutt TW. Myocutaneus flaps in lip reconstruction. Applications of the Karapandzic principle. Plast Reconstr Surg. 1977;59(5):680-8.

11. Hills RJ. Innervated musculocutaneous lip flap (Karapandzic technique). Australas J Dermatol. 1998;39(3):190-1.

12. Clairmont AA. Versatile Karapandzic lip reconstruction. Arch Otolaryngol. 1977;103(11):631-3.

13. Smith PG, Muntz HR, Thawley SE. Local myocutaneous advancement flaps. Alternatives to cross-lip and distant flaps in the reconstruction of ablative lip defects. Arch Otolaryngol. 1982;108(11):714-8.

14. Rashid M, Hanif MS, Illahi I, Aslam R, Hameed S, Masood T. Reconstruction of lip defects with the Karapandzic technique. J Coll Physicians Surg Pak. 2003;13(4):219-22.

15. Tai-Fung C, Wen-Shyan H, Shyi-Gen C, Shou-Liang C, Tim-Mo C, Hsian-Jenn W, et al. Karapandzic flap for reconstruction of large lower lip defects: a case report. J Med Sci. 2000;20(6):316-20.

16. Mélega JM. Cirurgia plástica: fundamentos e arte. Cirurgia reparadora de cabeça e pescoço. Rio de Janeiro: Medsi; 2002. p.939.










1. Cirurgião plástico, membro associado da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), especialização em Cirurgia Plástica no Serviço de Cirurgia Plástica Dr. Ewaldo Bolívar de Souza Pinto, Universidade Santa Cecília (UNISANTA), Santos, SP, Brasil
2. Cirurgião plástico, membro titular da SBCP, preceptor do Serviço de Cirurgia Plástica Dr. Ewaldo Bolívar de Souza Pinto - UNISANTA, Santos, SP, Brasil
3. Mestre, cirurgião plástico, membro titular da SBCP, preceptor do Serviço de Cirurgia Plástica Dr. Ewaldo Bolívar de Souza Pinto - UNISANTA, Santos, SP, Brasil
4. Cirurgião plástico, membro titular da SBCP, regente do Serviço de Cirurgia Plástica Dr. Ewaldo Bolívar de Souza Pinto - UNISANTA, Santos, SP, Brasil
5. Doutor, cirurgião plástico, membro titular da SBCP, diretor do Curso de Pós-graduação em Cirurgia Plástica - UNISANTA, Santos, SP, Brasil

Correspondência para:
Osvaldo Ribeiro Saldanha
Av. Washington Luiz, 142 - Vila Mathias
Santos, SP, Brasil - CEP 11050-200
E-mail: clinica@clinicasaldanha.com.br

Artigo submetido pelo SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBCP.
Artigo recebido: 13/7/2010
Artigo aceito: 28/12/2010

Trabalho realizado no Serviço de Cirurgia Plástica Dr. Ewaldo Bolívar de Souza Pinto, Universidade Santa Cecília (UNISANTA), Santos, SP, Brasil.

 

Previous Article Back to Top Next Article

Indexers

Licença Creative Commons All scientific articles published at www.rbcp.org.br are licensed under a Creative Commons license