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Original Article - Year2013 - Volume28 - Issue 4

http://www.dx.doi.org/10.5935/2177-1235.2013RBCP0656

RESUMO

INTRODUÇÃO: Fasceíte necrotizante é uma grave infecção que consome a pele períneo-escrotal rapidamente. Superada a infecção, faz-se necessária a cobertura das estruturas comprometidas. Apresentamos uma série de pacientes acometidos por fasceíte necrotizante que foram submetidos à reconstrução escrotal com a utilização do retalho súpero-medial da coxa.
MÉTODO: Sete pacientes do sexo masculino foram submetidos à reconstrução escrotal, uni ou bilateralmente, com o retalho súpero-medial da coxa.
RESULTADOS: Os pacientes apresentaram resultados satisfatórios quanto à cobertura testicular e ao aspecto da área doadora.
CONCLUSÃO: O retalho súpero-medial da coxa se apresentou como excelente opção para reconstrução escrotal por produzir boa cobertura testicular, ser de fácil execução e melhorar a estética local.

Palavras-chave: Doença de Fournier. Escroto/Cirurgia. Retalhos cirúrgicos.

ABSTRACT

INTRODUCTION: Necrotizing fasciitis is a severe infection that consumes the perineal-scrotal skin quickly. Overcome the infection, it is necessary to cover the compromised structures. We present a series of patients suffering from necrotizing fasciitis who underwent scrotal reconstruction using the superior medial thigh flap.
METHODS: Seven male patients underwent unilateral or bilateral scrotal reconstruction with superior medial thigh flap.
RESULTS: The patients showed satisfactory results as regards coverage testicular and appearance of the donor area.
CONCLUSION: The superior medial thigh flap is presented as an excellent choice for scrotal reconstruction by testicular produce good coverage, is easy to perform and improve local aesthetics.

Keywords: Fournier Disease. Scrotum/Surgery. Surgical flaps.


INTRODUÇÃO

A síndrome de Founier, também conhecida como fasceíte necrotizante dos genitais, períneo e região perianal, é uma doença infecciosa rara, agressiva, mutilante e que apresenta alta morbirmortalidade1.

Com a instalação do processo infeccioso há uma rápida evolução para necrose das estruturas envolvidas, que se estende até o plano fascial, resultando numa grande quantidade de tecidos desvitalizados.

Para controle local desta infecção agressiva, faz-se necessário suporte clínico adequado, incluindo antibioticoterapia de amplo espectro e controle hidroeletrolítico, além de sucessivos debridamentos cirúrgicos até atingir a margem de tecido sadio2, culminando com perdas teciduais importantes1 e com exposição da musculatura regional do pênis e dos testículos. Nos casos em que há acometimento perianal podem ser necessários desviar o trânsito intestinal por meio de uma colostomia3. Da mesma forma, para evitar contaminação urinária, também pode-se realizar cistostomia4.

Superada a fase crítica da infecção, há a necessidade de cobertura da ferida resultante5 para uma recuperação funcional e estética das estruturas até então expostas, com ênfase para a cobertura testicular, principalmente naqueles indivíduos em condições de reprodução.

A reconstrução das grandes áreas períneo-escrotais acometidas por esta afecção constitui um verdadeiro desafio para o cirurgião plástico6.

Dentre as várias opções disponíveis para cobertura adequada dos testículos e das áreas vizinhas, o retalho súpero-medial da coxa se apresenta como sendo extremamente vantajoso devido à sua simplicidade de execução, pela presença de pele excessiva na área doadora e pela confiabilidade vascular. Trata-se de um retalho fasciocutâneo idealizado obliquamente e com base sobre o músculo abdutor longo da coxa,3 que é transposto uni ou bilateralmente para confecção da neobolsa escrotal com cobertura testicular eficiente.

Apresentamos uma casuística de pacientes acometidos por fasceíte necrotizante com destruição escrotal, os quais foram reconstruídos com retalho súpero-medial da coxa e obtiveram resultados satisfatórios.


MÉTODO

Entre agosto de 2008 e junho de 2012 foram tratados cirurgicamente e acompanhados, no Hospital São Francisco de Assis em Crato - Ceará, sete pacientes do sexo masculino acometidos for fasceíte necrotizante com exposição dos testículos.

A faixa etária dos pacientes variou de 42 a 76 anos, com média de 53,2 anos. Um paciente era diabético e hipertenso; outro era portador do Mal de Alzheimer e outro era paraplégico. Dois pacientes necessitaram de desvio de trânsito intestinal, e outros três foram submetidos à cistostomia.

Dos sete pacientes submetidos ao procedimento cirúrgico, seis necessitaram de retalhos bilaterais, enquanto um paciente necessitou apenas de retalho unilateral à direita.

Todos os pacientes permaneceram internados, no mesmo hospital, desde a fase aguda da infecção, até a época da reconstrução escrotal, apresentando média de permanência de 32,6 dias.

Os debridamentos foram realizados pela equipe de cirurgia geral até o controle infeccioso, enquanto os curativos foram feitos por enfermeira especializada até o surgimento de bom tecido de granulação.

Técnica cirúrgica

Paciente em posição de litotomia, com raquianestesia nos sensíveis e sedação no paraplégico. Marcação do retalho baseada no tamanho da área cruenta a ser recoberta, estando à base deste na raiz da coxa e a sua porção terminal em direção oblíqua, assumindo formato aproximadamente triangular (Figura 1). Reavivamento das bordas dos tecidos granulados com retirada do tecido fibrótico. Incisão do retalho e descolamento no sentido distal para o proximal, incluindo a fáscia muscular (Figura 2), transposição e fixação com pontos na borda sadia recobrindo a área cruenta. Fechamento primário da região doadora.


Figura 1 - Exposição dos testículos e períneo após fasceíte necrotizante. Marcação cirúrgica dos retalhos.


Figura 2 - Elevação do retalho fasciocutâneo à direita.



Drenos de Penrose nº 2 foram utilizados, sendo removidos após 24 ou 48 horas.


RESULTADOS

Todos os pacientes tiveram uma boa cobertura testicular e se disseram satisfeitos com o resultado obtido. Houve alargamento da cicatriz em um lado da coxa no paciente paraplégico. Em outro paciente com reconstrução bilateral, ocorreu pequena necrose da ponta do retalho, que se resolveu conservadoramente. Houve um edema prolongado nos retalhos de um terceiro paciente, que regrediu por volta do 3º mês de pós-operatório. O paciente portador de retração do funículo espermático (Figura 3) queixou-se de dor testicular, que cedeu com tratamento medicamentoso.


Figura 3 - Grande retração do funículo espermático com deslocamento testicular. Marcação do retalho fasciocutâneo unilateralmente.



O acompanhamento ambulatorial variou de 6 meses até 1 ano e meio. ( Figura 4 -8)


Figura 4-Pós-operatório imediato de reconstrução escrotal unilateral direita


Figura 5 - Pós-operatório de reconstrução escrotal unilateral com 18 meses.


Figura 6 - Pré-operatório de reconstrução escrotal.


Figura 7 - Pós-operatório imediato de reconstrução escrotal bilateral.


Figura 8 - Pós-operatório de reconstrução escrotal bilateral com 3 meses.



DISCUSSÃO

A Síndrome de Fournier é uma fasceíte necrotizante aguda rapidamente progressiva e potencialmente fatal que acomete principalmente as regiões genital, perineal e periana1,5. Ela se caracteriza por apresentar evolução rápida e fulminante para sepse com altos níveis de morbimortalidade2.

Trata-se de uma infecção polimicrobiana com uma causa identificável em 95% dos casos, que se inicia na região genital ou perineal. Histologicamente, ocorre uma endarterite obliterante, seguida de isquemia e trombose dos vasos subcutâneos, que resultam em necrose da pele e tecido celular subcutâneo adjacente.

Fatores predisponentes incluem diabetes mellitus, trauma local, extravasamento de urina, intervenção cirúrgica perirretal ou perineal, extensão de infecção periuretral, abscesso anorretal, infecção genitourinária, alcoolismo1,7,8, imunossu-pressão, portadores de HIV e doença renal ou hepática, sendo o diabetes mellitus o mais comumente encontrado7.

É mais prevalente em homens (10:1) e sua incidência é de aproximadamente 1/7500, sendo que até 45% dos acometidos são diabéticos e 25% abusam do álcool9. Raramente acomete crianças1.

em predileção por idosos, diabéticos5, alcoólatras, desnutridos, imunodeprimidos, obesos, cirróticos9, internados de longa data10 e socioeconomicamente desfavorecidos.

Devido à gravidade e rapidez no avanço da infecção, há a necessidade de se fazer extensos e repetidos debridamentos cirúrgicos para controle local do processo infeccioso. Esta medida resulta em grandes áreas cruentas e exposição dos testículos, que ficam desprotegidos e suspensos apenas pelos funículos espermáticos, necessitando em seguida de cobertura tecidual adequada por meio de procedimento restaurador11. Estes não sofrem necrose pelo fato de sua vascularização e drenagem linfática serem diferentes da do pênis e do escroto4,12.

No tratamento das áreas cruentas resultante de fasceíte necrotizante no escroto, três aspectos devem ser considerados: a cicatrização da ferida, a manutenção da função e a recuperação estética13.

Em caso de retardo no processo de cobertura testicular, a contração que se segue à formação da granulação encarcera os testículos, podendo levar a torções ou compressões que alterem a espermatogênese, que já poderá ter sido prejudicada pela própria doença13 (Figura 3).

Múltiplos debridamentos cirúrgicos para retirada de restos necróticos constituem regra e não exceção, ocorrendo em média de 3,5 procedimentos por paciente.

O retalho súpero-medial da coxa foi descrito pela primeira vez por Hirshowitz13,14 para reconstruir escroto e vulva. Ele possui rica vascularização, principalmente a partir dos ramos da artéria femoral (pudendo interno e circunflexo), tornando-o seguro inclusive em diabéticos e vasculopatas. Ele promove boa reposição para perdas extensas de pele escrotal, é de fácil execução técnica e produz excelentes resultados estéticos tanto na área doadora como receptora5,8.

Para Ferreira et al.14, além destas vantagens, o retalho súpero-medial da coxa é confeccionado em tempo único, não deixa sequela na área doadora e traz de volta o equilíbrio psicológico do acometido em relação à cobertura das estruturas genitais, até então expostas.

O retalho apresenta tecido semelhante ao do escroto, contendo inclusive pelos, preservação da sensibilidade local pela inclusão dos nervos ilioinguinal e ramo genital do nervo genitofemoral3,8,13, simples execução em único tempo cirúrgico12 e síntese primária da área doadora. Como fator limitante, temos a disponibilidade da área doadora da coxa, que em pacientes jovens pode ser escassa pela pouca flacidez da região.

Para Mordjikian1, os retalhos fasciocutâneos apresentam menores proteção, volume e vascularização do que os miocutâneos, porém, com a vantagem de não causarem comprometimento funcional da área doadora.

Ferreira et al.14, num estudo retrospectivo entre 1985 e 2003, analisaram prontuários de 43 pacientes que foram acometidos por fasceíte necrotizante, utilizaram o retalho súpero-medial da coxa em 26 deles, sendo 17 bilateral e 9 unilateralmente. Deiscência parcial ocorreu em cinco pacientes.

El-Mageed12 defende o retalho anterior da face medial da coxa em comparação com o súpero-medial, afirmando que o primeiro apresenta as seguintes vantagens: dissecção e acesso mais fáceis, arco de rotação menos agudo e com menor risco de torção do pedículo, orelha de cachorro menor na parte superior por conta da transposição e cicatriz na área doadora, ficando distante da área de atrito entre as coxas.

Ayad6, numa série de sete pacientes, utilizou o retalho medial da coxa para realizar reconstrução de bolsa escrotal após gangrena de Fournier. Este retalho assemelha-se com o de nossa série, exceto pela altura da dissecção em sentido ascendente, e pela não produção de área cruenta que necessite de enxertia de pele por nossa parte.

A reconstrução da bolsa escrotal após uma gangrena de Fournier continua sendo um grande desafio para o cirurgião plástico. A reconstrução é importante para a função, estética e por razões psicológicas6.

Para Whaib8, pequenas complicações como deiscências, seroma localizado, edema prolongado do retalho, necrose distal, parestesias e alargamento de cicatriz na área doadora podem ocorrer, sem, no entanto, comprometer o bom resultado estético obtido com a reconstrução.

Em nossa série, verificamos num caso de reconstrução bilateral uma pequena área de necrose distal em um dos retalhos que cicatrizou por segunda intenção. Um edema persistente dos retalhos em outro paciente com reconstrução bilateral que cedeu após 3 meses e um alargamento de cicatriz na área doadora num paciente paraplégico. No paciente com retração do funículo espermático (Figura 3) houve persistência da queixa de dor em topografia testicular por cerca de 1 ano após a reconstrução.

Para todos os nossos pacientes, foi orientado repouso e a utilização de suspensório escrotal por um período de pelo menos 3 semanas de pós-operatório. Estes cuidados servem para reduzir o edema, a tensão sobre a ferida, devido ao peso das estruturas, favorecendo assim a ocorrência de uma boa cicatrização13.

No paciente em que houve a persistência do edema prolongado, estes cuidados não foram seguidos, resultando num tempo maior para a sua recuperação.

A reconstrução ideal deve ter as seguintes características: cirurgia em tempo único, retalho com sensibilidade mantida, mínima morbidade na área doadora, simplicidade na sua execução e confiabilidade no retalho confeccionado6,12.


CONCLUSÃO

O retalho súpero-medial da coxa constitui uma excelente opção para reconstrução escrotal por ser de fácil execução, promover uma boa cobertura testicular e não produzir sequela na área doadora, além de proporcionar resultados duradouros do ponto de vista funcional e estético.


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1. Membro especialista. Professor Assistente II
2. Graduanda em medicina pela Faculdade de medicina do Juazeiro do Norte, CE

Paulo José Alves
Rua Pedro Cardoso sobreira 10 apto 201 Lagoa Seca
Juazeiro do Norte ,Ceara, Brasil

Artigo recebido: 05/09/2013
Artigo aceito: 05/10/2013

Trabalho realizado : Hospital São Francisco de Assis. Crato, Ceará, Brasil

 

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