ISSN Online: 2177-1235 | ISSN Print: 1983-5175

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Case Reports - Year2020 - Volume35 - Issue 3

http://www.dx.doi.org/10.5935/2177-1235.2020RBCP0044

RESUMO

Introdução: No final de 2019, o mundo viu surgir uma nova síndrome respiratória denominada Covid-19, causada por um novo tipo de coronavírus, o Sars-CoV-2. Classificada como uma pandemia, ela tem causado impactos de magnitude ainda imensuráveis.
Relato de caso: Homem de 57 anos desenvolveu ferida inguinal direita, após exploração cirúrgica por infecção de prótese usada em bypass femoro-poplíteo. A equipe de cirurgia plástica optou pelo tratamento com desbridamento cirúrgico, associado com terapia por pressão negativa para preparo do leito da ferida. No pós-operatório, apresentou síndrome respiratória aguda grave e suspeita de Covid-19, com necessidade de intubação e de cuidados intensivos. Foi colhido amostra para RT-PCR do Sars-CoV-2 e associado ao tratamento as medicações cloroquina e azitromicina. Apesar do tratamento intensivo, o paciente foi a óbito. O resultado do exame RT-PCR para o novo coronavírus foi positivo, sendo liberado dois dias após a morte.
Discussão: A análise deste relato permite supor que o paciente provavelmente contraiu o novo coronavírus dentro do próprio hospital, pois o mesmo encontrava-se internado pelo período dos 35 dias anteriores à evolução para insuficiência respiratória. Esse fato, juntamente com sua evolução desfavorável, corrobora a orientação de minimizar ao máximo as internações e os procedimentos cirúrgicos a fim de promover maior segurança ao paciente e à equipe de saúde.
Conclusão: Pacientes internados estão susceptíveis à infecção pelo novo coronavírus e podem configurar grupo de maior de risco, uma vez que muitos deles já se encontram debilitados.

Palavras-chave: Vírus da SARS; Cirurgia plástica; Coronavírus; Ferimentos e lesões; Desbridamento

ABSTRACT

Introduction: At the end of 2019, the world saw the emergence of a new respiratory syndrome called Covid-19, caused by a new type of coronavirus, Sars-CoV-2. Classified as a pandemic, it has caused impacts of considerable magnitude.
Case Report: A 57-year-old man developed a right inguinal wound after surgical exploration for infection of a prosthesis used in a femur-popliteal bypass. The Plastic Surgery team opted for treatment with surgical debridement associated with negative pressure therapy to prepare the wound bed. In the postoperative period, he had severe acute respiratory syndrome and suspected Covid-19, requiring intubation and intensive care. A sample for RT-PCR of Sars-CoV-2 was collected, and the medications chloroquine and azithromycin were associated with the treatment. Despite intensive treatment, the patient died. The result of the RT-PCR test for the new coronavirus was positive, being released two days after death.
Discussion: The analysis of this report allows us to suppose that the patient probably contracted the new coronavirus at the hospital, as he was hospitalized for 35 days before the evolution of respiratory failure. This fact, together with its unfavorable evolution, corroborates the orientation of minimizing hospitalizations and surgical procedures as much as possible to promote more safety for the patient and the health team.
Conclusion: Inpatients are susceptible to infection with the new coronavirus and can set up a group at higher risk since many of them are already weakened.

Keywords: SARS virus; Plastic surgery; Coronavirus; Wounds and injuries; Debridement.


INTRODUÇÃO

No final de 2019, o mundo viu surgir uma nova síndrome respiratória denominada Covid-19, causada por um novo tipo de coronavírus, o Sars-CoV-2. Em março de 2020, a Organização Mundial de Saúde classificou essa nova doença como uma pandemia, que tem causado impactos de magnitude ainda imensuráveis1. Nos últimos meses, houve uma notória produção científica que procurou compreender melhor a fisiopatologia dessa nova doença, a origem e sequenciamento genético do SARS-CoV-2, características da sua disseminação, patogenia, meios de diagnóstico, protocolos de suporte e tratamento dos doentes2.

Essa pandemia revelou que o mundo não estava preparado para uma crise de tamanha proporção. A escassez de insumos necessários (equipamentos de proteção individual, ventiladores mecânicos), estrutura sanitária (disponibilidade de leitos, sobretudo aqueles de terapia intensiva) e recursos humanos treinados (médicos, equipe de enfermagem, fisioterapia, etc.) é uma constatação frequente no enfrentamento da Covid-193. Muito além de ser apenas uma crise sanitária, a pandemia expõe a cirurgia plástica a um novo desafio: como lidar com pacientes que necessitam de tratamento cirúrgico no contexto de enfrentamento deste novo vírus?

A velocidade de disseminação do novo coronavírus foi superior à das medidas de precaução e preparo dos agentes de saúde. Inúmeros esforços simultâneos foram realizados, tais como distanciamento social, restrições de deslocamento, suspensão de atendimentos ambulatoriais não prioritários, interrupção de cirurgias eletivas e manutenção apenas de cirurgias de urgência/emergência ou casos oncológicos, além do estímulo ao uso de equipamentos de proteção individual (EPIs) e treinamento das equipes. Apesar de tudo isso, tem havido disseminação intrahospitalar do Sars-CoV-2 ou mesmo a admissão de pacientes já infectados com o novo coronavírus, não só no Brasil como no mundo1.

É notória a importância da disseminação viral por pacientes, acompanhantes e profissionais de saúde assintomáticos. Estima-se que cerca de 80% das transmissões são advindas deste grupo4. Seguindo as orientações de autoridades sanitárias nacionais e internacionais, houve a recomendação para suspensão de cirurgias eletivas e dos atendimentos não prioritários em consultório, além de adesão ao distanciamento social. Tais medidas, além de reduzir a exposição dos pacientes ao risco da infecção, também aumenta a disponibilidade de leitos de enfermaria e de terapia intensiva para o enfrentamento da crise.

Neste artigo, relatamos o caso de um paciente com ferida complexa inguinal, tratado pela equipe de Cirurgia Plástica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (HCFMRP-USP). O paciente evoluiu com insuficiência respiratória aguda, com necessidade de cuidados intensivos. A confirmação diagnóstica de Covid-19 foi realizada “post mortem” após exame de RT-PCR positivo para o novo coronavírus.

RELATO DE CASO

Homem de 57 anos com doença arterial obstrutiva periférica, em pós-operatório de bypass femoro-poplíteo direito com prótese, foi internado dia 29/02/2020 devido à infecção da prótese e iniciado antibioticoterapia endovenosa. Como antecedentes cirúrgicos, foi submetido à amputação infrapatelar esquerda, em 2015; três bypass femoro-poplíteos à direita (2015, 2017, 2018); e, reabordagem desse by-pass, em 13/02/2020, com achado de prótese de PTFE trombosada, com sinais de infecção.

No dia 05/03/2020, a equipe da cirurgia vascular realizou exploração cirúrgica inguinal direita com achados de infecção local, seguido de desbridamento cirúrgico, resultando em uma ferida inguinal. No dia seguinte, o paciente evoluiu com obstrução arterial aguda do membro inferior direito (MID), sendo tratado por meio de tromboembolectomia com cateter, seguido de retorno do pulso no membro acometido. Contudo, houve piora progressiva da perfusão tecidual e no dia 13/03/2020 foi realizado amputação suprapatelar direita.

A equipe da cirurgia plástica, que já estava em regime de contingenciamento e remanejamento com o mínimo possível de exposição individual devido à pandemia, foi convocada para avaliar a ferida inguinal direita, no dia 31/03/2020. Ao exame, identificamos uma ferida complexa de 10cm x 8cm, com presença de esfacelos e áreas com tecido de granulação, sem sinais de infecção e ausência de exposição de grandes vasos (Figura 1). Optou-se pelo tratamento com desbridamento cirúrgico associado com terapia por pressão negativa (TPN) para preparo do leito da ferida5,6 (Figura 2).

Figura 1 - Ferida em região inguinal direita com presença de esfacelos e áreas com tecido de granulação.

Figura 2 - Aplicação de terapia por pressão negativa sobre a ferida.

Após três dias, o paciente apresentou pico febril, taquicardia e taquipneia, evoluindo com síndrome respiratória aguda grave (SRAG) e necessidade de cuidados intensivos. Após transferência para o centro de terapia intensiva (CTI), foi realizado intubação orotraqueal e o paciente ficou em isolamento respiratório e de contato, de acordo com o protocolo do HCFMRP-USP, durante a pandemia de Covid-19. A radiografia de tórax realizada no leito demonstrou infiltrado intersticial bilateral (Figura 3). Segundo o sistema SAPS 3, o cálculo da probabilidade de óbito à admissão no CTI foi de 90,98%7.

Figura 3 - Imagem da radiografia de tórax feita no leito mostrando infiltrado intersticial bilateral.

Devido à suspeita de SRAG pelo novo coronavírus, foi colhido amostra para RT-PCR do Sars-CoV-2, e foi associado ao tratamento as medicações cloroquina e azitromicina, conforme protocolo do HCFMRP-USP. No dia 04/04/2020, após manutenção de platô febril refratário às medidas farmacológicas, o paciente evoluiu com hipotensão e necessidade de droga vasoativa, mantendo ventilação protetora.

Apesar do tratamento intensivo e das medidas farmacológicas, o paciente manteve instabilidade hemodinâmica com droga vasoativa em ascensão, sendo diagnosticado choque séptico refratário. Simultaneamente, apresentou piora da função renal com indicação de terapia renal substitutiva, porém sem condições hemodinâmicas para hemodiálise.

A evolução do quadro clínico foi desfavorável, com parada cardíaca em atividade elétrica sem pulso. Optou-se pela não reanimação devido à refratariedade das medidas instituídas, sendo então declarado óbito no dia 05/04/2020. O resultado do exame RT-PCR para o novo coronavírus foi positivo, este foi liberado dois dias após a morte.

Dados de revisão de prontuário revelam que este paciente dividiu o quarto de enfermaria com outro paciente, que também evoluiu com SRAG no dia 02/04/2020, também com necessidade de cuidados intensivos e intubação orotraqueal. Tal paciente também teve diagnóstico de infecção pelo novo coronavírus confirmado por RT-PCR.

DISCUSSÃO

O novo cenário apresentado pela pandemia do coronavírus levou a uma série de restrições sociais e mudanças nas rotinas dos hospitais1. A rediscussão e elaboração continuada de protocolos de segurança do paciente e da equipe de saúde são necessários, uma vez que cerca de 80% dos infectados pelo Sars- CoV-2 podem ser assintomáticos, sendo, portanto, fonte relevante de transmissão4.

A análise deste relato permite supor que o paciente provavelmente contraiu o novo coronavírus dentro do próprio hospital, pois o mesmo encontrava-se internado pelo período dos 35 dias anteriores à evolução para insuficiência respiratória. Esse fato, juntamente com sua evolução desfavorável, corrobora a orientação de minimizar ao máximo as internações e os procedimentos cirúrgicos a fim de promover maior segurança ao paciente e a equipe de saúde1. Além disso, a situação reforça a necessidade do uso de EPIs e reforço das medidas de higiene8. Outro fator importante a ser considerado seria o remanejamento das equipes assistentes e dos médicos residentes, a fim de obter uma menor exposição e reduzir a chance de infecção por parte da equipe médica9. Até a finalização da redação deste artigo, nenhum membro da nossa equipe manifestou quadro sugestivo de contaminação pelo novo coronavírus.

CONCLUSÃO

Como relatado neste caso, pacientes em regime de internação hospitalar estão susceptíveis à infecção pelo novo coronavírus e podem configurar grupo de maior de risco, uma vez que muitos deles já se encontram debilitados. A cirurgia plástica também está incluída nesse contexto, uma vez que realiza tratamento de pacientes com feridas complexas, que podem apresentar múltiplas comorbidades e que podem necessitar de internações por períodos prolongados. Ressaltamos a necessidade de proteção dos pacientes e dos profissionais, com uso de EPIs para minimizar o risco de contaminação pelo novo coronavírus, causador da pandemia Covid-19.

REFERÊNCIAS

1. COVIDSurg Collaborative. Global guidance for surgical care during the COVID-19 pandemic. Br J Surg. 2020 Apr 15; [Epub ahead of print]. DOI: https://doi.org/10.1002/bjs.11646

2. Wang CJ, Ng CY, Brook RH. Response to COVID-19 in Taiwan: big data analytics, new technology, and proactive testing. JAMA. 2020 Mar;323(14):1341-2. DOI: https://doi.org/10.1001/jama.2020.3151

3. Ranney ML, Griffeth V, Jha AK. Critical supply shortages - the need for ventilators and personal protective equipment during the Covid-19 pandemic. N Engl J Med. 2020 Mar 25; [Epub ahead of print]. DOI: https://doi.org/10.1056/NEJMp2006141

4. Li R, Pei S, Chen B, Song Y, Zhang T, Yang W, et al. Substantial undocumented infection facilitates the rapid dissemination of novel coronavirus (SARS-CoV2). Science. 2020 Mar 16; [Epub ahead of print]. DOI: https://doi.org/10.1126/science.abb3221

5. Coltro PS, Ferreira MC, Batista BP, Nakamoto HA, Milcheski DA, Tuma Júnior P. Role of plastic surgery on the treatment complex wounds. Rev Col Bras Cir. 2011 Nov/Dec;38(6):381-6.

6. Lima RVKS, Coltro PS, Farina Júnior JA. Negative pressure therapy for the treatment of complex wounds. Rev Col Bras Cir. 2017 Jan/Feb;44(1):81-93. DOI: https://doi.org/10.1590/0100-69912017001001

7. Silva Junior JM, Malbouisson LMS, Nuevo HL, Barbosa LGT, Marubayashi LY, Teixeira IC, et al. Aplicabilidade do escore fisiológico agudo simplificado (SAPS 3) em hospitais brasileiros. Rev Bras Anestesiol. 2010;60(1):20-31. DOI: https://doi.org/10.1590/S0034-70942010000100003

8. Bartoszko JJ, Farooqi MAM, Alhazzani W, Loeb M. Medical masks vs N95 respirators for preventing COVID-19 in health care workers: a systematic review and meta-analysis of randomized trials. Influenza Other Respir Viruses. 2020 Apr 4; [Epub ahead of print]. DOI: https://doi.org/10.1111/irv.12745

9. Nassar AH, Zern NK, McIntyre LK, Lynge D, Smith CA, Petersen RP, et al. Emergency restructuring of a general surgery residency program during the coronavirus disease 2019 pandemic: the University of Washington experience. JAMA Surg. 2020 Apr 6; [Epub ahead of print]. DOI: https://doi.org/10.1001/jamasurg.2020.1219











1. Universidade de São Paulo, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto, SP, Brasil.

Instituição: Divisão de Cirurgia Plástica – Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, Ribeirão Preto, SP, Brasil.

COLABORAÇÕES

VGS Análise e/ou interpretação dos dados, Aprovação final do manuscrito, Coleta de Dados, Conceitualização, Concepção e desenho do estudo, Redação - Preparação do original.

PSC Análise e/ou interpretação dos dados, Aprovação final do manuscrito, Conceitualização, Concepção e desenho do estudo, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição, Supervisão.

HOCG Análise e/ou interpretação dos dados, Aprovação final do manuscrito, Coleta de Dados.

DHH Análise e/ou interpretação dos dados, Aprovação final do manuscrito, Coleta de Dados.

GMAS Análise e/ou interpretação dos dados, Aprovação final do manuscrito, Coleta de Dados.

JAFJ Análise e/ou interpretação dos dados, Aprovação final do manuscrito, Concepção e desenho do estudo, Gerenciamento do Projeto, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição, Supervisão.

Autor correspondente: Pedro Soler Coltro, Av. Bandeirantes 3900, Câmpus Universitário, Monte Alegre, Ribeirão Preto, SP, Brasil. CEP: 14048-900. E-mail: psc@usp.br

Artigo submetido: 21/04/2020.
Artigo aceito: 30/04/2020.

Conflitos de interesse: não há.

 

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