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Articles - Year2003 - Volume18 - Issue 1

RESUMO

A utilização de retalhos localizados na face é indicada na reconstrução total do lábio inferior, mesmo quando a lesão primária vai além do seu limite anatômico.
Apresentamos três pacientes portadores de carcinoma espinocelular do lábio inferior, com lesões acima de 4,0 cm no seu maior diâmetro, nos quais a reconstrução total foi realizada.

Palavras-chave: Lábio - tumores; lábio inferior - cirurgia; retalhos de face

ABSTRACT

The use of flaps from the face is indicated for total reconstruction of the lower lip, even when the primary lesion goes beyond its anatomical boundaries. The authors present three patients with spinocellular carcinoma of the lower lip, whose lesions were greater than 4.0 cm in their larger diameter; and who underwent total reconstruction ofthe lower lip.

Keywords: Lip-tumors; lower lip-surgery; face flaps


INTRODUÇÃO

Nas deformidades do lábio inferior decorrentes de ressecções tumorais, os retalhos de face são a primeira opção para reconstrução. A proximidade das áreas doadora e receptora favorece um bom resultado estético e funcional.

O conhecimento da anatomia do lábio inferior é necessário para se indicar a técnica adequada para sua reconstrução. O componente esfinctérico (fechamento) do lábio é representado pelas fibras circulares ou semicirculares do músculo orbicular da boca auxiliado pelo músculo mental. O componente dilatador (abertura) é formado pelas fibras radiais de vários músculos faciais: levantador do lábio superior e da asa do nariz, levantador do lábio superior, zigomático maior, bucinador, depressor do ângulo da boca, depressor do lábio inferior, levantador do ângulo da boca (Fig. 1). A irrigação é feita pela artéria facial, cujas artérias labial superior e inferior se anastomosam (Fig. 2). A linfa é drenada para os linfonodos submandibulares e submentais. A inervação sensitiva do lábio superior é dada pelo nervo infraorbital e a do lábio inferior, pelo nervo mental. A inervação motora é feita pelo nervo facial.


Fig. 1 - Músculos do lábio superior e inferior.



Fig. 2 - Vascularização arterial do lábio superior e inferior.



Apesar de existirem técnicas como a de Barron & Saad(1), que em 1990 descreveram a utilização do retalho miocutâneo do músculo platisma na reconstrução total do lábio inferior, com bons resultados, e outras como a de Tobin(2) (1990), que usou o músculo depressor do lábio inferior, técnicas descritas com a utilização de retalhos arteriais cutâneos da face contendo músculo inervado são realizadas até hoje. Os retalhos osteomiocutâneos com abordagem microcirúrgica são utilizados quando a área a ser reconstruída se estende até a mandíbula e a região mental. O desafio atual é a recuperação dos movimentos do lábio inferior, pois a função motora do músculo orbicular dificilmente será restituída.

O objetivo deste trabalho é mostrar que a utilização de retalhos localizados na face é indicada na reconstrução total do lábio inferior, mesmo quando a lesão primária vai além do seu limite anatômico.


HISTÓRICO

Dieffenbach(3), em 1834, descreveu uma técnica para reconstrução do lábio inferior na qual usava um grande retalho retangular, de espessura total da bochecha, que avançava de cada lado da face.

Bürow(4), em 1838, preconizou a ressecção de triângulos de pele e subcutâneo, laterais aos sulcos nasolabiais, para facilitar o avanço dos retalhos de bochecha na reconstrução do lábio inferior.

Camile Bernard(5), em 1853, descreveu a técnica na qual ampliou o princípio do avanço de retalhos laterais.

Scymanowski(6), em 1858, modificou a técnica de Dieffenbach(3), propondo o uso de retalhos na região da bochecha, laterais aos sulcos nasolabiais, para reconstrução total do lábio inferior.

Webster(7),em 1960, associou à técnica de Camile Bernard(5) incisões longitudinais que se originavam nas comissuras labiais e outras paralelas que se iniciavam ao nível do mento. Isto proporcionou a correção do excesso de tecido na região central do mento.

Karapandzic(8), em 1974, propôs o uso de um retalho de rotação, contralateral ao defeito, a partir do sulco nasolabial, abrangendo a espessura total da bochecha. Essa técnica oferecia bons resultados estéticos e funcionais em perdas de até 3/4 do lábio.

A técnica de Scymanowski(6) foi modificada por Fujimore(9) em 1980, sendo denominada de "Técnica de retalhos em portão", pela maneira como os retalhos nasolabiais ajustavam-se para reconstruir o lábio inferior (Figs. 3 e 4).


Fig. 3 - Técnica de Fujimore(9). Retalhos demarcados. A distância OB=O'B' varia de 0,5 cm para 1,0 cm ou até 2 cm em pacientes idosos. A distância BC=B'C' é de 3 cm. As incisões AB, A'B', AC, AC', são de espessura total e CE, C'E', ED, E'D', somente na pele e no subcutâneo. As linhas pontilhadas correspondem aos excessos de mucosa utilizados na reeonstrução do sulco lábio-alveolar e vermelhão do lábio.



Fig. 4 - Técnica de Fujimore. Retalhos após transposição.



Barron & Saad(1), em 1990, descreveram a utilização de retalho miocutâneo do músculo platisma na reconstrução total do lábio inferior.

Tellioglu(10), em 1997, publicou trabalho no qual preconizava a associação do músculo depressor do lábio inferior com um retalho livre microcirúrgico de área do antebraço (retalho radial), na reconstrução total do lábio inferior. Afirmou que a substituição do esfíncter do músculo orbicular é proporcionada pelo músculo depressor do lábio inferior. Afirmou também que a sensibilidade do retalho radial é proporcionada pela neurorrafia do nervo sensitivo do retalho com o nervo mental.

Em 2000, Miguel Sabino Neto(11) e cols. publicaram um trabalho propondo a utilização de retalho constituído pelo músculo depressor do lábio inferior associado a ilha cutânea para reconstrução do lábio inferior, técnica já descrita por Tobin(14), em 1990. Mostraram excelente resultado estético e funcional em 18 pacientes.


CASUÍSTICA E MÉTODO

Foram selecionados para este trabalho 3 pacientes portadores de Carcinoma Espinocelular do lábio inferior, todos com tumores maiores que 4 cm no seu maior diâmetro.

Caso nº 1

Paciente com 92 anos de idade, do sexo feminino, cor branca, natural da Bahia, portadora de lesão vegetante de lábio inferior medindo 5,0 x 2,0 x 1,5 cm nos maiores diâmetros, sem linfonodos cervicais palpáveis (Figs. 5, 6 e 7).


Figs. 5,6 e 7 - Pré-operatório do paciente (caso nº1).



Foi realizada a ressecção da lesão, com margem de segurança de aproximadamente 1,0 cm, sob anestesia local. A reconstrução foi realizada pela técnica de Camile Bernard(5), utilizando-se retalhos das regiões das bochechas, através de incisões longitudinais na pele e músculos a partir das comissuras labiais, associadas com outras paralelas na mucosa, localizadas em nível superior a aproximadamente 0,8 cm, permitindo mucosa suficiente para a reconstrução do vermelhão. A região central do lábio e mento foi fechada sem tensão, graças à ressecção de triângulos de pele e subcutâneo, laterais aos sulcos nasolabiais.

Caso nº 2

Paciente com 58 anos de idade, do sexo masculino, cor branca, natural de Alagoas, portador de lesão ulcerada de lábio inferior medindo 4,0 x 1,5 x 0,9 cm nos maiores diâmetros, com linfonodos submandibulares bilaterais palpáveis. Foi realizada punção aspirativa por agulha fina em nódulo submandibular esquerdo, que comprovou haver metástases de carcinoma espinocelular (Figs. 8, 9 e 10).


Figs. 8, 9 e 10 - Pré-operatório do paciente (caso nº2).



O esvaziamento cervical supra-omoióideo bilateral foi realizado. Em seguida, foi ressecada a lesão com margem de segurança de 1,0 cm, abrangendo todo o lábio inferior. A reconstrução foi feita pela técnica de Fujimore(9) (Figs. 11 e 12).


Figs. 11 e 12 - Transoperatório e pós-operatório recente do paciente (caso nº2).



Caso nº 3

Paciente com 75 anos de idade, do sexo feminino, cor branca, natural da Bahia, portadora de lesão ulcerada e vegetante de lábio inferior medindo 8,0 x 2,5 x 1,0 cm nos maiores diâmetros, com linfonodos submandibulares bilaterais (Figs. 13, 14 e 15). O esvaziamento cervical supra-omoióideo bilateral foi realizado. Em seguida, foi realizada ressecção da lesão, com margem de segurança de 1,0 cm, abrangendo todo o lábio inferior, e ressecção marginal da mandíbula ao nível do mento. A reconstrução seguiu a técnica de Fujimore(9), associada ao avanço de retalho cutâneo cervical para ajudar a reconstrução do mento e retalho de língua para reconstruir o vermelhão. (Figs. 16 e 17).


Figs. 13, 14 e 15 - Pré-operatório do paciente (caso nº3).



Figs. 16 e 17 - Transoperatório do paciente (caso nº3).



RESULTADOS

No caso nº 1, em que a cirurgia foi realizada sob anestesia local, a paciente teve alta no 3º dia de pós-operatório. Após 6 meses de cirurgia, encontrava-se assintomática, apresentando bom resultado estético e funcional (Figs. 18 a 21).


Figs. 18 a 21 - Pós-operatório do pacienre (caso nº1).



Nos outros dois casos, a sonda nasogástrica foi retirada no 6º dia; a alta ocorreu no 7º dia de pós-operatório. O exame anatomopatológico da lesão diagnosticou carcinoma espinocelular e margens de ressecção livres de neoplasia em todos os casos. No caso nº 2, o exame anatomopatológico do esvaziamento cervical identificou metástases de carcinoma espinocelular em cinco linfonodos no total de nove, e no caso nº 3, um linfonodo no total de dezoito. No caso nº 3, o exame anatomopatológico do fragmento de mandíbula identificou invasão por carcinoma espinocelular. O pedículo do retalho de língua utilizado no caso nº 3 foi secionado no 15º dia após a alta hospitalar. No pós-operatório de 6 meses (caso nº 3) e de 1 ano (caso nº 2), os pacientes estavam assintomáticos, apresentando bom resultado estético e funcional (Figs. 22 a 29).


Figs. 22 a 25 - Pós-operatório do paciente (caso nº2).



Figs. 26 a 29 - Pós-operatório do paciente (caso nº3).



DISCUSSÃO

As primeiras técnicas descritas para correção da deformidade do lábio inferior decorrente de ressecções de tumores foram realizadas com retalhos de face.

As técnicas de Bernard(5) (1852), Estlander(12) (1852), Abbé(13) (1898), Gillies(14) (1920), Webster(7) (1960) e Karapandzic(8) (1974), que preconizavam a utilização de retalhos localizados na face, são, entre tantas outras, realizadas até hoje. A técnica de Fujimore(9), descrita em 1980, utilizava retalhos a partir dos sulcos nasolabiais semelhantes aos descritos por Scymanowski(6), em 1858. As modificações propostas propiciaram: a) o aumento da largura dos retalhos e de sua distância à comissura labial, levando mais tecido para o novo lábio; b) retalhos axiais, com preservação dos vasos sangüíneos a partir da comissura labial; c) reconstrução do vermelhão do lábio e do sulco lábio-alveolar utilizando a mucosa da bochecha.

O autor realçou as seguintes vantagens:

1. O retalho pode ser feito 3 cm mais largo do que os retalhos nasolabiais de rotação.
2. A rotação do retalho é possível sem formação do excesso de pele na sua base.
3. O retalho contém músculo inervado.
4. O procedimento pode ser realizado em estágio único.

Hoje em dia, apesar da evolução nas reconstruções advindas dos retalhos microcirúrgicos, a preferência na utilização de retalhos de face deve-se a: a) proximidade dos tecidos; b) sua semelhança; c) maior facilidade da realização da técnica cirúrgica. Quando existir uma recidiva tumoral, dependendo da sua extensão, ou quando os tecidos não oferecerem condições seguras para uma reconstrução, estará indicado um retalho fora dos limites anatômicos da face. Assim, retalhos a distância seriam sempre uma segunda opção.


CONCLUSÃO

Conclui-se que:

a) a reconstrução total do lábio inferior poderá ser realizada utilizando-se apenas retalhos localizados na face;
b) quando a área a ser reconstruída ultrapassar o limite anatômico do lábio inferior, a reconstrução poderá ser realizada com retalhos de face associados com retalhos da proximidade;
c) os retalhos de língua e do pescoço associados com retalhos de face favorecem o bom resultado estético e funcional.


BIBLIOGRAFIA

1. Barron JN & Saad MN. Platysma musculocutaneous flap to the lower lip. In: B. Strauch LO. Vasconez, and EJ. Hall-Findlay (Eds.), Grabb's Encyclopedia of Flaps, Vol. 1. Boston: Little, Brown & Co; 1990. p. 989-93.

2. Tobin GR. Funtional lower lip and oral sphinter reconstruction with innervated depresor anguli oris flap hair-bearing skin flap. In: Grabb's Encyclopedia of Flaps, 1. ed. Boston: Little, Brown & Co; 1990. p. 665-9.

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4. Bürow A. Zur Blepharoplastik. Monatsschr. Med Augenheilkd Chir. 1838;1:57-61.

5. Bernard C. Cancer de la lèvre inferieur operé par un procède nouveau. Bull Soc Chir Paris. 1853;3:357-60.

6. Scymanowski J von. Zur plastichen Chirurgie. Vrtljschr Prakt Heilk. 1858;60:152-7.

7. Webster RC, Coffey RJ, Kelleber RE. Total and partial reconstruction of the lower lip with innervated muscle bearing flaps. Plast Reconstr Surg. 1960;25:360-71.

8. Karapandzik M. Reconstruction of the lip defects by local arterial flaps. Br J Plast Surg. 1974;27:93-7.

9. Fujimore R. "Gate flap" for the total reconstruction of the lower lip. Br J Plast Surg. 1980;33:340-7.

10. Tellioglu AT, Akyüz M. Functional reconstruction of total lower lip defects with a radial forearm free flap combined with a depressor anguli muscle transfer. Ann Plast Surg. 1998;40(3):310-1.

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13. Abbé R. A new plastic operation for relief of deformity due to double harelip. Med Rec New York. 1898;53:477-51.

14. Gillies HD, Millard R. Principles and art of plastic surgery. Boston: Little, Brown & Co; 1957. p. 507-8.










I.Mestre em Cirurgia Plástica Reparadora pela UNIFESP-EPM, Cirurgião Plástico do Hospital Municipal Infantil Menino Jesus, em São Paulo.
II. Doutora em Medicina pela UNIFESP-EPM.
III. Prof.a Titular da Disciplina de Cirurgia Plástica do Depto. de Cirurgia da UNIFESP-EPM.
IV. Prof. Livre Docente da Disciplina de Otorrinolaringologia da UNIFESP-EPM.

Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo. Depto. de Cirurgia - Disciplina de Cirurgia Plástica e Depto. de Otorrinolaringologia - Setor de Cirurgia de Cabeça e Pescoço.

Endereço para correspondência:
R. Manoel da Nóbrega, 277
São Paulo - SP - 04614-000
Fone: (11) 5543-9451 - Fax: (11) 5532-1677
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