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Case Reports - Year2011 - Volume26 - Issue 4

RESUMO

A reconstrução do terço distal da perna representa um desafio para muitos cirurgiões plásticos. Usualmente, os retalhos microcirúrgicos têm sido considerados de escolha para essas reconstruções; no entanto, muitos hospitais ainda não dispõem de equipamentos ou equipe microcirúrgica treinada nesse tipo de procedimento, além dos casos em que as condições clínicas do paciente não permitem uma cirurgia de maior porte. O presente trabalho propõe o relato de dois casos de reconstrução do terço distal da perna com retalho reverso do músculo solear, baseado nas perfurantes da artéria tibial posterior, como alternativa aos retalhos microcirúrgicos. O retalho solear reverso apresentou excelente resultado, com pequeno tempo cirúrgico, fácil realização, excelente resolubilidade e pouca morbidade da área doadora.

Palavras-chave: Extremidade inferior. Lesões dos tecidos moles. Retalhos cirúrgicos. Músculo esquelético.

ABSTRACT

Reconstruction of the distal third of the leg represents a challenge for many plastic surgeons. Although microsurgical flaps have been the method of choice for this reconstruction, many hospitals do not have equipment or microsurgical staff trained for this type of procedure. Moreover, the patient's clinical condition does not allow a more complex surgery in some cases. This study reports two cases of reconstruction of the distal third of the leg with reverse flap of the soleus muscle, based on the perforators of the posterior tibial artery, as an alternative to microsurgical flaps. The reverse soleus flap had an excellent outcome with short surgical duration, easy implementation, excellent resolution, and low morbidity of the donor area.

Keywords: Lower extremity. Soft tissue injuries. Surgical flaps. Muscle, skeletal.


INTRODUÇÃO

A reconstrução do terço inferior da perna representa um desafio para muitos cirurgiões plásticos. Usualmente, o retalho microcirúrgico tem sido considerado de escolha para essas reconstruções1-5; no entanto, muitos hospitais ainda não dispõem de equipamentos ou equipe microcirúrgica treinada nesse tipo de procedimento. Em outros casos, os pacientes não são candidatos à reconstrução microcirúrgica, em decorrência de suas condições clínicas, tendo o cirurgião que disponibilizar alternativas de tratamento1-5.

Normalmente os defeitos do terço inferior da perna rapidamente expõem estruturas nobres, como osso e tendão, o que requer a realização de uma reconstrução segura e com tecido bem vascularizado3,4.

O músculo solear situa-se na região posterior da perna, profundamente aos músculos gastrocnêmios, sendo classificado como tipo II, de acordo com a classificação de Mathes e Nahai. Seu pedículo principal é a artéria tibial posterior e seus ramos perfurantes, os pedículos secundários3,4.

O músculo solear tem sido usado com frequência na reconstrução de defeitos do terço médio da perna, baseado em seu pedículo principal. Entretanto, a viabilidade do uso do músculo solear de forma reversa, baseado em seus pedículos secundários, tem sido descrita por alguns autores para reconstrução de defeitos do terço inferior da perna, sendo essa uma opção à utilização de retalhos microcirúrgicos1-8.

Uma vantagem do uso do retalho hemissolear, em comparação ao retalho de todo o músculo solear, é a preservação da flexão plantar do pé, realizada pela porção lateral do músculo, que é deixado em seu local de origem. Além disso, o retalho medial tem maior ângulo de rotação que um retalho convencional do músculo solear1-4. A parte da musculatura medial é suprida em todo seu comprimento por perfurantes da artéria tibial posterior. Essa constante torna a parte medial do músculo solear viável, como um retalho baseado distalmente de forma reversa1-4.

O presente trabalho tem por objetivo o relato de dois casos de reconstrução de defeitos do terço inferior da perna com o uso do retalho hemissolear reverso.


RELATO DOS CASOS

Técnica Cirúrgica


Os pacientes foram posicionados em decúbito dorsal para realização do procedimento. Realizou-se incisão em uma linha 2 cm medial ao bordo medial da tíbia, o que forneceu amplo acesso ao músculo solear (Figura 1A). Dissecou-se o músculo, e os pedículos vasculares secundários foram identificados na porção distal, para promover bom arco de rotação. O músculo foi então dividido longitudinalmente ao longo da rafe mediana para baixo, na altura das perfurantes distais, e separado do tendão de Aquiles. A partir da rafe mediana, a porção medial foi dissecada da lateral e seccionada na junção entre os terços proximal e médio (Figura 1B). O músculo medial foi então transferido para o local do defeito como retalho hemissolear reverso, evitando-se a tensão, e fixado com fio de náilon 4.0 (Figura 1C). A área doadora foi fechada primariamente com pontos separados de náilon 4.0 e colocado dreno de sucção (Figura 1D). A enxertia de pele foi realizada em um segundo tempo cirúrgico sobre a área cruenta do retalho muscular. Posteriormente, o paciente foi orientado a manter repouso com membro elevado por 4 a 5 dias, para evitar edema e congestão no retalho.


Figura 1 - Técnica cirúrgica. Em A, área da lesão desbridada e incisão medial na perna para acesso ao músculo solear. Em B, exposição e dissecção do músculo solear. Em C, rotação da porção medial do músculo solear e cobertura da área de lesão. Em D, síntese primária da área doadora e cobertura da antiga área exposta pelo músculo solear reverso.



Caso 1

Paciente do sexo masculino, 26 anos de idade, com queixa de lesão em terço distal da perna direita que não cicatrizava desde um trauma automobilístico sofrido há mais de um ano. Ao exame físico, o paciente apresentava uma lesão de 6 cm x 5 cm (30 cm2), com exposição óssea em sua porção central (Figura 2). Em 15 de agosto de 2005, o paciente foi submetido a desbridamento amplo da lesão, inclusive da porção óssea exposta, realizando-se a reconstrução do defeito com o retalho do músculo solear reverso, conforme técnica descrita. O paciente recebeu alta no segundo dia de pós-operatório; o retalho sobreviveu totalmente, sendo enxertado no sétimo dia de pós-operatório. Houve integração total do enxerto de pele e, até a presente data, não houve recidiva da lesão.


Figura 2 - Caso 1. Em A, pré-operatório, revelando lesão ulcerada com exposição óssea. Em B, pós-operatório de 3 meses. Em C, pós-operatório de 9 meses.



Caso 2

Paciente do sexo masculino, 19 anos de idade, com queixa de lesão em terço distal da perna direita que não cicatrizava desde um trauma automobilístico sofrido há mais de três anos, quando apresentou fratura de tíbia com lesão vascular da artéria poplítea. A reconstrução vascular foi realizada no momento do trauma, com enxerto de veia safena da artéria poplítea para o tronco tibiofibular. Ao exame físico, o paciente apresentava lesão de 4 cm x 12 cm (48 cm2), com exposição óssea na porção central. Previamente à reconstrução, o paciente havia realizado arteriografia do membro inferior direito, que revelou ausência de comprometimento vascular distal e de obstruções significativas no enxerto vascular. Em 30 de março de 2009, o paciente foi submetido a reconstrução do defeito com retalho do músculo solear reverso. No momento da confecção do retalho, observou-se atrofia de toda a musculatura posterior da perna; entretanto, a confecção do retalho hemissolear foi suficiente para cobertura adequada do defeito ósseo. O paciente recebeu alta no segundo dia de pós-operatório; o retalho sobreviveu totalmente, sendo enxertado 21 dias após a cirurgia. Houve integração total do enxerto de pele.


DISCUSSÃO

O retalho do músculo hemissolear reverso, proposto inicialmente por Tobin, em 1985, consiste no uso da parte medial do músculo solear para reconstruções das partes medial e distal do membro inferior com exposições não muito extensas da tíbia, sendo sua irrigação baseada nas perfurantes da artéria tibial posterior1,2.

Nesses casos, utiliza-se a região medial do músculo solear pelo seu maior arco de rotação, com excelente irrigação, e por causar menor sequela funcional na área doadora quando comparado ao uso de todo o músculo solear ou mesmo do gastrocnêmio. Esse retalho é de fácil realização, e pode ser confeccionado em um período de até duas horas, diminuindo a morbidade do procedimento em pacientes de risco3.

Nos pequenos defeitos tibiais proximais do terço distal da perna, em geral com mais de 5 cm de distância do maléolo medial, podem ser utilizadas as porções tanto proximal como distal do músculo solear. Já para defeitos mais distais, a porção proximal do músculo solear pode ser usada de forma reversa, frequentemente para cobrir o maléolo medial3.

No presente trabalho, foi utilizado o retalho distal do músculo solear, usado de forma reversa, baseado nas perfurantes distais da artéria tibial posterior, em dois casos com exposição tibial de longa data, com área de 30 cm2 e 48 cm2. Em ambos os casos obteve-se sucesso com o retalho, realizado de forma rápida e segura, sem grande morbidade na área doadora, cobrindo adequadamente o defeito com a exposição de área nobre e sem expor o paciente ao tempo cirúrgico prolongado de um retalho microcirúrgico. No entanto, essa cobertura somente foi possível pelo pequeno tamanho da exposição, devendo ficar claro que, em casos de defeitos maiores, pode ser mais seguro utilizar um retalho microcirúrgico.

O retalho hemissolear reverso pode ser usado em defeitos de até 50 cm2, havendo possibilidade de sofrimento do retalho nos casos que ultrapassarem essas medidas. Também não deve ser usado em pacientes com doença vascular periférica significante, bem como em alguns casos de diabetes3-5.

Além das vantagens já discutidas, outro ponto de vista relevante é o custo hospitalar dos procedimentos. Thornton et al.7 compararam os custos hospitalares entre o retalho solear reverso e os retalhos microcirúrgicos em pacientes com perfil e defeitos semelhantes, e observaram que o tempo de internação, o tempo cirúrgico, o custo hospitalar e o uso de unidade intensiva de tratamento foram significativamente menores no grupo de pacientes submetidos a reconstrução com retalho solear. Assim, esse tipo de reconstrução, quando pode ser realizado, constitui a primeira escolha para esses autores.

Da mesma forma, Beck et al.8 realizaram estudo comparando vários retalhos para tratamento de defeitos do terço distal da perna, como uso de músculo gastrocnêmio, retalhos fasciocutâneos, retalhos livres e retalho solear reverso, e concluíram que o solear reverso é uma excelente opção quando pode ser realizado, sendo o único na série dos autores que não apresentou complicações.

Schierle et al.9, após observarem alguns trabalhos com casos de necrose desse retalho, referem que isso indica que o suprimento sanguíneo retrógrado na porção distal do retalho continua a ser problemático, mesmo quando as "perfurantes críticas" são preservadas. Nesses casos, os autores realizam a aplicação dos princípios dos angiossomas, propostos por Taylor e Palmer, em 1987, e acreditam que esse procedimento pode ajudar a resolver essa limitação e melhorar os resultados do retalho hemissolear baseado distalmente. Recente experiência com retalhos de perfurante única dá segurança aos cirurgiões de que o retalho pode ser elevado e transferido com base em apenas uma perfurante ou em duas perfurantes, de acordo com os princípios dos angiossomas.

Nos casos dos retalhos fasciocutâneos, como no sural reverso, a principal limitação é a congestão venosa, que leva a problemas de viabilidade do retalho, associada à compressão do pedículo nos casos de uso de túnel subdérmico para transposição e posicionamento10. As desvantagens principais são cicatrizes inestéticas da área doadora do retalho e hipoestesia lateral do pé10. O retalho solear reverso, sob esse aspecto, é mais seguro, pois não exibe congestão venosa do retalho, além de possuir amplo arco de rotação, como já citado, e de permitir melhor estética da área doadora sem o desconforto da grande exposição da área doadora por no mínimo duas semanas, que o uso dos retalhos fasciocutâneos implica.


CONCLUSÕES

O retalho hemissolear reverso é seguro, bem vascularizado e de fácil realização, sendo muito bem empregado em casos de pequenos defeitos do terço distal da perna que necessita de boa cobertura de estrutura nobres. Os casos relatados demonstram excelente resolubilidade, com boa evolução e insignificante sequela da área doadora. Os autores consideram o retalho do músculo hemissolear reverso uma boa opção para reconstruções selecionadas do terço inferior da perna.


REFERÊNCIAS

1. Pu LL. The reversed medial hemisoleus muscle flap and its role in reconstruction of an open tibial wound in the lower third of the leg. Ann Plast Surg. 2006;56(1):59-63.

2. Pu LL. Soft-tissue coverage of an open tibial wound in the junction of the middle and distal thirds of the leg with the medial hemisoleus muscle flap. Ann Plast Surg. 2006;56(6):639-43.

3. Pu LL. Soft-tissue reconstruction of an open tibial wound in the distal third of the leg: a new treatment algorithm. Ann Plast Surg. 2007;58(1):78-83.

4. Pu LL. Successful soft-tissue coverage of a tibial wound in the distal third of the leg with a medial hemisoleus muscle flap. Plast Reconstr Surg. 2005;115(1):245-51.

5. Pu LL. Further experience with the medial hemisoleus muscle flap for soft-tissue coverage of a tibial wound in the distal third of the leg. Plast Reconstr Surg. 2008;121(6):2024-8.

6. Kauffman CA, Lahoda LU, Cederna PS, Kuzon WM. Use of soleus muscle flaps for coverage of distal third tibial defects. J Reconstr Microsurg. 2004;20(8):593-7.

7. Thornton BP, Rosenblum WJ, Pu LL. Reconstruction of limited soft-tissue defect with open tibial frature in the distal third of the leg: a cost and outcome study. Ann Plast Surg. 2005;54(3):276-80.

8. Beck JB, Stile F, Lineaweaver W. Reconsidering the soleus muscle flap for coverage of wounds of the distal third of the leg. Ann Plast Surg. 2003;50(6):631-5.

9. Schierle CF, Rawlani V, Galiano RD, Kim JY, Dumanian GA. Improving outcomes of the distally based hemisoleus flap: principles of angiosomes in flap design. Plast Reconstr Surg. 2009;123(6):1748-54.

10. Garcia AMC. Retalho sural reverso para reconstrução distal da perna, tornozelo, calcanhar e do pé. Rev Bras Cir Plást. 2009;24(1):96-103.










1. Doutorando em Cirurgia, membro titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), preceptor de Residência Médica em Cirurgia Plástica do Hospital Geral de Fortaleza, Fortaleza, CE, Brasil.
2. Membro aspirante da SBCP, médica residente do Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital Geral de Fortaleza, Fortaleza, CE, Brasil.
3. Membro titular da SBCP, chefe de clínica e regente do Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital Geral de Fortaleza, Fortaleza, CE, Brasil.

Correspondência para:
Marcus Vinicius Ponte de Souza Filho
Rua Nenê Gonçalves Barreira, 70 - Casa 9 - Cambeba
Fortaleza, CE, Brasil - CEP 60822-145
E-mail: mvponte@ig.com.br

Artigo submetido pelo SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBCP.
Artigo recebido: 1o/2/2010
Artigo aceito: 6/4/2011

Trabalho realizado no Hospital Geral Dr. Waldemar de Alcântara - Hospital Geral de Fortaleza - Secretaria da Saúde do Estado do Ceará (SESA), Fortaleza, CE, Brasil.

 

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