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Case Report - Year2012 - Volume27 - Issue 4

RESUMO

Existe uma deformidade cervical da linha média que tem sido descrita com vários nomes. Embora sua causa embriológica continue sendo controversa, a etiologia mais aceita até hoje é a falha da fusão na linha média dos arcos branquiais distais. A característica principal é uma lesão protuberante na linha média da região anterior do pescoço, entre o mento e a fúrcula esternal. Recomenda-se a ressecção cirúrgica completa da lesão, e a reconstrução do defeito com w-plastia ou zetaplastia. Neste artigo, é relatado o caso de uma paciente de 38 anos, com fissura congênita cervical da linha média. Após exérese da lesão, foi realizada zetaplastia simples, obtendo-se bom resultado tanto estético como funcional. As fissuras congênitas cervicais da linha média são alterações raras na população mundial, porém seu diagnóstico precoce e tratamento cirúrgico adequado são necessários para prevenir alterações no crescimento facial e restrição na extensão do pescoço.

Palavras-chave: Região branquial/anormalidades. Pescoço/cirurgia. Procedimentos cirúrgicos reconstrutivos.

ABSTRACT

Congenital midline cervical cleft is a deformity known by several names. Although its embryologic origin has not been clearly established, the most widely accepted etiology is impaired midline fusion of the distal branchial arches. The main characteristic of this malformation is a protruding lesion at the midline of the anterior neck, between the chin and the suprasternal notch. Complete surgical resection of the lesion is recommended, with repair of the defect using W-plasty or Z-plasty. This article reports the case of a 38-year-old patient with congenital midline cervical cleft. A simple Z-plasty was carried out after excision of the lesion, and a satisfactory aesthetic and functional result was achieved. Congenital midline cervical cleft is a rare abnormality; however, early diagnosis and appropriate surgical treatment are necessary to avoid changes in the development of the face and limitation of neck extension.

Keywords: Branchial region/abnormalities. Neck/surgery. Reconstructive surgical procedures.


INTRODUÇÃO

Dentre as deformidades do pescoço, existe uma localizada na linha média, conhecida como fissura mediana do pescoço, web neck, pterygium colli medianum ou fissura congênita cervical da linha média, entre outros nomes, que será referida ao longo deste artigo como CMCC (do inglês congenital midline cervical cleft). O primeiro relato da referida anormalidade foi realizado por Luschka, em 1848, mas foi Ombredanne, em 1946, em seu livro de cirurgia pediátrica, quem a descreveu completamente1,2.

A CMCC é uma deformidade rara, com menos de 100 casos publicados na literatura mundial. A causa embriológica dessa anormalidade é controversa, porém a maioria dos autores a classifica como alterações do desenvolvimento dos arcos branquiais3. Pode estar associada ou não a outras malformações congênitas, como cisto tireoglosso, cisto ectópico broncogênico ou lesões cardíacas2,4, porém, na literatura revisada, não foi achado nenhum relato de CMCC como parte de uma síndrome definida.

O tratamento da CMCC consiste em ressecção total da lesão e fechamento primário, que pode ser realizado com w-plastia ou, na maioria dos casos, com zetaplastia, seja ela simples ou múltipla5.


RELATO DO CASO

Paciente do sexo feminino, 38 anos, queixando-se de cicatriz na linha média da região cervical anterior e dificuldade para extensão do pescoço.

Ao exame físico, apresentava lesão mediana cervical, com pele fina, avermelhada, medindo 1 cm de largura por 10 cm de comprimento. À palpação, a lesão apresentava-se como um cordão firme, fibroso e superficial, sem aderência a planos profundos, de consistência um pouco mais endurecida na região distal, onde se observava um orifício de cerca de 2 mm de diâmetro, sem saída de secreção. No entanto, a paciente referia múltiplos episódios de infecção no local, com saída de secreção purulenta pelo orifício. Não havia alteração da lesão com a deglutição ou protrusão da língua. Adicionalmente, a paciente apresentava retrognatismo e limitação para a extensão do pescoço.

Foi realizada ultrassonografia cervical, que revelou estrutura tubular anecoica localizada nos planos subcutâneos da região cervical anterior, na linha média, medindo cerca de 2,6 mm em seus maiores diâmetros, estendendo-se da região submentoniana até a fúrcula esternal, onde se observava aparente orifício fistuloso com comunicação com a pele.

Durante a cirurgia, foi ressecada uma elipse de pele com 1 mm de margem, incluindo toda a espessura do defeito na profundidade. A lesão estendia-se desde a região submentoniana até pouco acima da fúrcula esternal. Havia duas bandas de tecido muscular no trajeto da lesão, não funcional à eletroestimulação, sem adesão aos planos mais profundos, que também foram ressecadas. Foi planejada zetaplastia múltipla incluindo o platisma para fechar o defeito. Entretanto, no decorrer da cirurgia, verificou-se que não havia necessidade de realização da segunda zetaplastia.

As Figuras 1 a 5 ilustram as principais etapas do procedimento cirúrgico.


Figura 1 - Aspecto pré-operatório. Marcação da ressecção e do plano cirúrgico.


Figura 2 - Aspecto intraoperatório. Elevação dos retalhos, observando-se banda muscular no trajeto da fissura.


Figura 3 - Aspecto intraoperatório. Banda muscular ressecada.


Figura 4 - Aspecto pós-operatório imediato. Sutura final do defeito.


Figura 5 - Aspecto pós-operatório imediato. Vista de perfil, demonstrando melhoria do contorno do pescoço.



O resultado do exame histopatológico revelou segmento cutâneo exibindo área de ulceração associada a denso infiltrado inflamatório misto. Nos demais cortes histológicos, observaram-se, na derme, estruturas glandulares císticas revestidas por epitélio cilíndrico mucossecretor e/ou ciliado sem atipias (Figura 6). A derme era representada por tecido conjuntivo denso, proliferação de vasos e infiltrado inflamatório mononuclear esparso. Em continuidade com a derme e constituindo fragmentos isolados, observava-se tecido muscular estriado esquelético e tecido conjuntivo vascularizado (Figura 7).


Figura 6 - Aspecto histopatológico, observando-se estruturas glandulares císticas revestidas por epitélio cilíndrico mucossecretor.


Figura 7 - Aspecto histopatológico, observando-se a derme representada por tecido conjuntivo denso, proliferação de vasos e infiltrado inflamatório mononuclear esparso. Em continuidade com a derme, observa-se tecido muscular estriado esquelético e tecido conjuntivo vascularizado.


O zetaplastia propiciou a obtenção de bom resultado tanto estético como funcional (Figura 8).


Figura 8 - Aspecto da incisão no 15º dia de pós-operatório, demonstrando melhoria do contorno do pescoço.



DISCUSSÃO

As CMCCs constituem anormalidade rara, existindo menos de 100 casos publicados na literatura2,6. Porém, há relatos demonstrando que cerca de 2% das malformações cervicais congênitas são CMCC1,7.

A causa embriológica mais aceita na atualidade é a falha da fusão na linha média dos arcos branquiais distais3,8,9. No entanto, a definição de qual arco e de como acontece a migração celular continua sendo controversa. Foi observado que casos de CMCC se encaixam em dois grupos principais: fissura cervical da linha média e hipoplasia do arco mandibular. Caso a migração celular, através do segundo arco (hioide), seja deficiente ou demorada, resulta em uma CMCC isolada. Já os casos mais complexos, com fissura da mandíbula ou da língua e ausência de estruturas de suporte cervical, são resultado da deficiência do primeiro arco (mandibular)7.

Embriologicamente, os arcos branquiais se formam no 22º dia. O primeiro arco divide-se em processos maxilar e mandibular, com uma fissura horizontal que divide cada lado na linha média. O processo mandibular aparece no 26º dia. A demora nessa etapa pode resultar em células ectodérmicas e mesodérmicas, sendo depositadas na porção anterior do pescoço8,9. Essas células continuam se diferenciando, formando músculo, tecido da glândula salivar e mucosa, resultando em CMCC9.

O diagnóstico da CMCC é clínico, e a característica principal é uma lesão protuberante na linha média da região anterior do pescoço, entre o mento e a fúrcula esternal. Estende-se, em sentido caudal, como uma fissura longitudinal coberta por epitélio avermelhado, na maioria das vezes descamativo. Na parte mais caudal da fissura, usualmente existe uma abertura do trato fistuloso com secreção mucosa. À palpação, sente-se um cordão fibroso subcutâneo que se estende por toda a fissura ou parte dela, desde a região submentoniana até a fúrcula esternal2,9.

Histologicamente, a lesão consiste em epitélio escamoso estratificado queratinizado, tecido fibroso e ausência de anexos epiteliais na derme8-10. No trato fistuloso e no cisto, encontra-se tecido glandular salivar, assim como epitélio colunar ciliado pseudoestratificado. Na região da deformidade em forma de mamilo, encontra-se pele normal, mas também pode haver cartilagem e músculo.

O tratamento dessa anormalidade é cirúrgico. No entanto, muitas vezes, o diagnóstico demora a ser feito, tanto pela confusão da anormalidade com outras lesões cervicais como pelo fato de não se dar importância aos achados clínicos pelos pais ou, inclusive, por alguns profissionais da saúde. O tratamento tardio da CMCC gera uma alteração no crescimento do terço inferior da face, afetando, principalmente, o desenvolvimento mandibular e a extensão do pescoço10. A zetaplastia é uma das manobras cirúrgicas utilizadas para a correção dos casos de CMCC, manobra rotineira dentro do arsenal da cirurgia plástica reparadora. Permite alongar uma contratura cicatricial, reorientar a direção de uma cicatriz ou de um defeito, quebrar uma linha reta e melhorar o contorno de tecidos moles em determinados lugares11, características que a convertem na primeira opção de tratamento da CMCC, seja ela única, dupla ou múltipla11.

A zetaplastia consiste na rotação de dois retalhos triangulares para fechar um defeito central. A zetaplastia clássica é desenhada simetricamente, em que os braços laterais da zeta são iguais ao defeito a ser reconstruído (braço central), e os ângulos entre os braços laterais e o braço central são de 60 graus11. O ângulo ótimo é de 60 graus, já que permite ganho teórico de 75% de comprimento11.

As fissuras congênitas cervicais da linha média são alterações raras na população mundial, porém seu diagnóstico precoce e tratamento cirúrgico adequado são necessários para prevenir alterações no crescimento facial e restrição na extensão do pescoço. O tratamento individualizado depende da gravidade do caso e as expectativas estéticas do paciente garantem resultado funcional e estético satisfatórios.


REFERÊNCIAS

1. Derbez R, Nicollas R, Roman S, Estève A, Triglia JM. Congenital midline cervical cleft of the neck: a series of five cases. Int J Pediatr Otorhinolaryngol. 2004;68(9):1215-9.

2. Ayache D, Ducroz V, Roger G, Garabédian EN. Midline cervical cleft. Int J Pediatr Otorhinolaryngol. 1997;40(2-3):189-93.

3. Kawar B, Siplovich L. Congenital midline cervical skin bridge: a case report. J Pediatr Surg. 2008;43(3):544-5.

4. Hirokawa S, Uotani H, Okami H, Tsukada K, Futatani T, Hashimoto I. A case of congenital midline cervical cleft with congenital heart disease. J Pediatr Surg. 2003;38(7):1099-101.

5. Cheng SS, Gottschall JA. Double opposing Z-plasty for congenital midline cervical web: a case report. Int J Pediatr Otorhinolaryngol Extra. 2009;4(3):123-8.

6. Genc A, Taneh C, Arslan O, Daglar Z, Mir E. Congenital midline cervical cleft: a rare embryopathogenic disorder. Eur J Plast Surg. 2002;25(1):29-31.

7. Niranjan NS. Webbing of the neck: correction by tissue expansion. Plast Reconstr Surg. 1989;84(6):985-8.

8. Erçöçen AR, Yilmaz S, Aker H. Congenital midline cervical cleft: case report and review. J Oral Maxillofac Surg. 2002;60(5):580-5.

9. Gardner RO, Moss AL. The congenital cervical midline cleft. Case report and review of literature. Br J Plast Surg. 2005;58(3):399-403.

10. Sharma U, Mehta MM, Bhatia VY. Congenital midline cervical cleft presenting as neck contracture. Eur J Plast Surg. 2009;32(5):263-6.

11. Hirokawa S, Uotani H, Okami H, Tsukada K, Futatani T, Hashimoto I. A case of congenital midline cervical cleft with congenital heart disease. J Pediatr Surg. 2003;38(7):1099-101.










1. Cirurgião plástico do Hospital Universitário Antonio Pedro da Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil. Cirurgião plástico da Clínica La Esperanza, Clínica Rey David e Clínica Farallones, Cali, Colômbia.
2. Especialista em cirurgia plástica, membro titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), regente do Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital Universitário Antonio Pedro da UFF, Niterói, RJ, Brasil.
3. Membro especialista da SBCP, cirurgião plástico do Hospital Universitário Antonio Pedro da UFF, Niterói, RJ, Brasil.
4. Medico interno do Hospital Universitário Antonio Pedro da UFF, Niterói, RJ, Brasil.

Correspondência para:
Álvaro Hernan Rodriguez Rodriguez
Carreira 41, número 5B-28
Cali, Colombia
E-mail: dralvarohrodriguez@hotmail.com

Artigo submetido pelo SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBCP.
Artigo recebido: 9/12/2011
Artigo aceito: 1º/7/2012

Trabalho realizado no Hospital Universitário Antonio Pedro da Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil.

 

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